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D. Helena Vessiva enamorara-se de D. João, com toda a pujança dos seus quinze anos e a fogosidade da sua raça, enfeitiçando por sua vez o moço, de tal modo que o levara ao extremo de cometer uma loucura, que poderia causar uma guerra entre os macassares e os portugueses: quando o junco que transportara os missionários para a ilha estava pronto para retornar a Malaca, D. João escondera a princesa com muito segredo no seu reservado e trouxera-a consigo.

Tendo já algum conhecimento do carácter dos povos orientais – mesmo dos bárbaros que ainda guardavam rituais de canibalismo, como os povos da Celebes –, o irmão Francisco Xavier sabia como lhes custava perder a face ou deixar por vingar ofensas à sua honra, por isso imaginava facilmente que o grande escândalo e a vergonha infligida a el-rei de Macassar e aos seus parentes tão cedo não permitiriam a presença de padres ou de mercadores portugueses na sua terra.

Suspirou com mágoa, sem todavia se dar por derrotado. Nessa noite haveria de saber a história com toda a minudência da boca do próprio capitão da fortaleza que, conhecendo o seu interesse em ter informações daquelas terras, o convidara para a ceia, onde também estaria Fernão Mendes Pinto, um mercador muito abastado e aventureiro, que fora dos primeiros portugueses a visitar a China e o Japão.

Se não pudesse ir para Macassar, partiria para Amboíno, uma das ilhas Molucas onde os jesuítas queriam lançar ferro, porque seria então da vontade de Deus destinar-lhe essa missão. Tinha também muito interesse em ouvir o que esse tal Fernão Mendes tinha para contar, porque, como andava com os seus dois irmãos nos tratos de mercadorias naqueles mares, conhecia por experiência todos os portos e lugares gentios, livres do domínio muçulmano.

Na fortaleza, só se fala do novo cerco de Diu. Coja Çofar, o renegado italiano ao serviço de Mahmud Sh-ah, sultão de Cambaia, a quem se ficara a dever o primeiro cerco àquela fortaleza, não esquecera a humilhação da derrota que lhe infligira António da Silveira com o seu punhado de valentes. Voltara disposto a vingar-se e a conquistá-la, cercando-a com um exército de guzerates, turcos e abexins, ainda mais poderoso do que o anterior, sujeitando-a a constantes assaltos. O capitão de Diu, D. João de Mascarenhas, tal como Silveira, apesar de ter uma guarnição com pouquíssima gente, lograra até então rechaçar todos os seus ataques, causando pesadíssimas baixas aos inimigos, inclusive a do próprio renegado.

– Apesar da morte de Coja Çofar e dos sucessivos desastres, os turcos e guzerates mantêm o cerco – conta o capitão da frota de patrulha que trouxe as últimas notícias. – Não creio que os nossos possam resistir por muito mais tempo.

– Os muros, baluartes e outras defesas da fortaleza foram todos reparados e fortificados, depois do primeiro cerco, disso posso assegurar-vos, pois fiz parte dos que trabalharam na sua reconstrução – lembra Fernão Mendes Pinto.

Francisco Xavier ouve-o com atenção, estudando-lhe o rosto e as entoações de voz, procurando conhecer o homem por trás do aventureiro em busca de fortuna. Pertencia ao círculo de confiança de Pêro de Faria e apresentara-se na fortaleza em companhia de João Fernandes de Ilher, em cuja casa pousava, e dos seus dois irmãos, António e Álvaro Mendes, vindos do reino a seu chamado, para ali se estabelecerem.

– As últimas novas que dela nos chegaram foi da sua destruição iminente.

– Este governador não há-de tardar a socorrer a fortaleza, ao contrário do que fez D. Garcia de Noronha que, com as suas delongas, chegou lá já depois de António da Silveira ter corrido com os exércitos reunidos de Coja Çofar e do capado Soleimão Baxá! – assegura Simão de Melo, o capitão de Malaca. – D. João de Castro jurou não ter descanso enquanto não vingar a morte do seu filho mais novo, D. Fernando, e de todos os valentes que com ele pereceram.

– À semelhança do que fez D. Francisco de Almeida, ao vingar o seu filho Lourenço, na espantosa batalha no mar de Diu, no ano de mil quinhentos e nove, em que desbaratou por completo a armada dos rumes – compara o vigário D. Afonso Martins –, D. João de Castro tem prestes uma forte armada que, embora não se possa comparar com as forças de Mahmud, não me espanta que faça o mesmo que o vizo-rei.

Fernão ouve-os, de coração apertado, lembrando os amigos que fizera na fortaleza, alguns dos quais talvez já tivessem perdido a vida. Por quanto mais tempo se iria manter Diu na posse dos portugueses? Uma fortaleza alcantilada numa ponta de terra, no próprio coração das nações inimigas, um porto privilegiado para vigiar e dominar o comércio naqueles mares. Pouco tempo decerto. Tal como Goa. Não seria possível a Portugal, com tão pouca gente – a maioria mais interessada em enriquecer os próprios bolsos do que os cofres do reino –, manter um império com tal envergadura, espalhado pelo mundo. Talvez Diu se livrasse do cerco, mas, como se costuma dizer, não há duas sem três e à terceira haveria de cair nas mãos dos rumes e mouros. Assim como Goa.

Enganava-se Fernão, soube-o mais tarde, e melhor do que ele sabe o leitor dos tempos presentes que Goa, Damão e Diu foram dos portugueses durante mais de quatro séculos. Pouco tempo passado sobre esta conversa, quando a situação dos sitiados chegara à mesma sufocante opressão e desespero do primeiro cerco, D. João de Castro surgiu com os seus reforços e travou ferocíssima batalha, obtendo, apesar da tremenda diferença numérica, uma retumbante vitória sobre as forças dos rumes comandadas por Rumecão, o filho de Coja Çofar.

Durante a ceia na fortaleza e com a ajuda de um bom vinho acabado de chegar do reino, as conversas tornaram-se mais prazerosas e brejeiras, apesar da presença do vigário e do padre Francisco Xavier, que, por fim, ficou a conhecer em pormenor a história de D. João de Herédia e de D. Helena Vessiva, cujo casamento teria lugar muito em breve, na própria sé de Malaca, por exigência do chantre Vicente Viegas, a fim de minorar o escândalo e os danos nas relações entre os reinos de Portugal e de Supa, que a leviandade do moço havia causado.

– Como é que ninguém se apercebeu de que ele levava a princesa roubada? Podiam ter sido todos mortos! – exclama o vigário, escandalizado.

– D. Helena é formosíssima e ele, dada a sua própria juventude, não soube resistir aos seus encantos – contrapõe um capitão, amigo do moço, como a desculpá-lo.

Simão de Melo é o único dos presentes a não se rir, pois compete-lhe resolver o espinhoso problema que está longe de ser uma brincadeira.

– Como o noivo é de boa fidalguia, com o tempo e algumas remessas de presentes, espero que D. João Tubinanga perdoe a ofensa e aceite o casamento da filha como se fora concertado pela família, em vez de pôr os reis das restantes ilhas, seus aliados, em pé de guerra contra Malaca. – E acrescenta num tom ainda mais severo para o amigo de João de Herédia: – É mister que esse casamento se faça bem depressa, porque ele não pode viver amancebado com a princesa como se ela fora uma bicha escrava.

– Esperemos também que el-rei se acolha de novo ao seio da Igreja – volve D. Afonso Martins – e permita aos padres, isentos de culpas na fuga dos amantes, pregarem de novo nas ilhas para fazerem cristãos.

O padre Francisco Xavier, conhecendo bem o orgulho dos fidalgos aragoneses e portugueses, acredita que aquele matrimónio será mais facilmente aceite pelos pais da noiva do que pelos do noivo, de modo que não se espantará se o casal, proscrito na Celebes tenha de ficar a viver em Malaca ou em Goa, para sempre.

– Não há português que consiga resistir ao sortilégio das mulheres do Oriente – diz Fernão Mendes Pinto, com uma risada. – Enfeitiçam-nos e quase nos fazem perder a alma.

Apesar do tom alegre, o padre Francisco sente amargura na voz do mercador. O aventureiro faz rir toda a gente com as suas facécias sobre os maus fados que toda a vida o têm perseguido com naufrágios, guerras e desgraças sem fim.