– Não só tive de lutar nas forças do tirano bramaa contra o infeliz Chaubainhaa de Martavão, como ainda fui dado por escravo, com sete companheiros, ao embaixador que o maldito carniceiro enviou ao rei de Calaminham! Felizmente que o nosso amo era um bom homem e admirava muito os portugueses, de modo que nos trouxe sempre no seu séquito como seus oficiais.
– Como é e onde fica esse reino de Calaminham? – pergunta-lhe o padre Francisco, ávido de conhecer nações gentias onde possa lançar as sementes do cristianismo.
– O império de Calaminham tem mais de trezentas léguas, assi de largo como de comprido. Vimos muitas cidades populosas e ricas, até chegar a Timplão196, a metrópole onde reside o imperador com toda a sua corte. Está situada ao longo de um grande rio chamado Pituy, por onde navegam infinitas embarcações de remo. É cercada toda em roda de dous terraplenos de cantaria muito forte, com cavas largas por fora e, em todas as portas, tem castelos com torres muito altas. Disseram-nos uns mercadores que a conheciam bem que tinha quatrocentos mil fogos, de casas de um a dous sobrados, sendo as mais ricas de mercadores e da gente nobre. As dos senhores principais estão separadas, dentro de cercas muito grandes, com terreiros para os seus passatempos e arcos nas entradas, ao modo da China, com jardins, pomares e tanques de água muito acomodados aos gostos e delícias da vida a que aquela gente é muito inclinada.
O aventureiro causa viva impressão ao jesuíta, com as suas descrições dos lugares que visitara, embora tenha alguma dificuldade em distinguir a verdade da fantasia nos sucessos extraordinários que ele narra, quer das suas viagens ao serviço de Pêro de Faria, quer nas incursões de corso pelas costas da China, a que a necessidade o obrigara.
– Chamei os manos, quando a Fortuna me sorria e me achei com meios de poder fazer com eles uma parceria para os tratos de Pegu e Sião. Porém, ainda as minhas cartas não lhes tinham chegado às mãos e já eu perdera num naufrágio tudo quanto amealhara e empatara nas mercadorias que o mar engoliu.
– Prouve a Deus salvar-vos a vida.
– Sem dúvida, reverendo padre Francisco! Embora tantos desastres, como os que eu tenho sofrido, só possam ser castigos de Deus pelos meus muitos pecados, a Divina Providência tem-me salvado sempre no último instante, senão há muito que não estaria entre os vivos. Já fui tantas vezes cativo e vendido que lhes perdi o conto!
Ouvem-se exclamações de pasmo e incredulidade e alguns frouxos de riso. Por momentos, o padre interroga-se se o mercador não será um mero soldado de fortuna, um daqueles fanfarrões que ganham a vida com a espada ou o mosquete e a animar os serões dos seus patronos, contando patranhas sobre as suas vidas mesquinhas para as engrandecer. No entanto, nos seus olhos há uma expressão de inteligência, franqueza e calor humano que não deixa ninguém indiferente. Apercebendo-se do riso e da dúvida, Fernão franze o rosto numa careta de ironia, encolhendo os ombros como quem já espera a descrença e a ignora:
– Descredes do que digo? Então é porque vistes muito pouco destes mares e não conheceis senão o que está diante dos vossos narizes! Quando volvíamos de Calaminham com o embaixador de Bramaa, depois de cumprida a missão, logrei fugir de Pegu para Chatigão, no reino de Bengala, graças à ajuda do capitão de uma galeota e daí embarquei para Goa noutra fusta de um mercador português. Ambos são testemunhas dos meus males. Em Goa prestei contas a Pêro de Faria da embaixada a que me havia mandado, o qual, apiedado da minha miséria e em paga dos meus passados serviços, me enviou num dos seus juncos destinado a Java, onde voltei a ser arrastado para uma longa guerra. Ganhei uma fortuna, vindo a sofrer um dos mais terríveis naufrágios da minha vida, nos mares da Ilha do Ouro. Não topei com ela, só com alguns dos seus naturais, perdi de novo tudo o que havia ganhado, fui feito mais uma vez cativo e vendido.
O jesuíta ouvira dizer que Fernão Mendes fora também um dos três descobridores da ignota terra dos japões e, depois de o conhecer, sente que aquele encontro lhe vai ser muito proveitoso. Há-de falar com ele, à puridade, com maior sossego, para lhe fazer perguntas e pedir que lhe escreva uma informação pormenorizada sobre a terra e os costumes, tanto dos japões como dos chins, o que não lhe deve ser difícil, visto ele se comprazer na escrita e ter tomado muitas notas de tudo o que ouviu, viu e experimentou. Talvez até lhe possa servir de guia nesse arquipélago onde nasce o sol.
Estes mercadores e corsários que andam nos tratos por conta própria ou dos seus protectores, portanto, fora da alçada da Coroa, poderiam ser facilmente aliciados por el-rei com algum cargo ou posto menor, levando-os a gastar o que têm e até a morrer a seu serviço e do reino. Haveria de recomendar a Sua Alteza que fizesse mercê a este Fernão Mendes e aos seus irmãos de os receber como seus moços de câmara, se o ajudassem.
Na presente ocasião, porém, todas as informações que ele lhe possa dar de Java e das ilhas que se estendem até às Molucas, serão muito bem-vindas.
– Não nos quereis contar esse vosso naufrágio? – roga-lhe.
– Se ninguém se opuser, contarei, apesar da paixão que ainda me causam as lembranças do que passei e dos amigos que perdi. – Hesita por momentos e acrescenta com ironia: – Além de correr o risco de ser tachado mais uma vez de mentiroso.
195 Pode tratar-se de cristãos nestorianos, que habitariam nos montes a Oeste de Pequim, a um dia de caminho da cidade.
196 Luang Prabang.
VII
Quem boceja a pescar não apanha peixe
(maori)
Martim Afonso de Sousa [deu a capitania da expedição] a um Jerónimo de Figueiredo, fidalgo do Duque de Bragança, que no ano de 1542 partiu de Goa com duas fustas e uma caravela em que levava oitenta soldados e oficiais da mareação, e não teve efeito a sua ida [à Ilha do Ouro] porque parece, segundo o que despois se viu, que desejando ele de ser rico mais depressa do que o esperava ser pela via que levava, se passou à costa de Tanauçarim, onde tomou algumas naus que vinham do estreito de Meca, de Adem, de Alcosser, de Judá, e de outros lugares da costa da Pérsia, e por se lá dar mal com os soldados, e não partir com eles do que tomara, conforme ao que de direito lhes vinha, se levantaram contra ele, e depois de outras muitas cousas, que me pareceu razão não se escreverem, o ataram de pés e de mãos, e o levaram à ilha Ceilão, onde o lançaram em terra no porto de Galé, e a caravela e fustas levaram ao Governador Dom João de Castro, que lhes deu perdão do que tinham feito, por irem d’Armada com ele a Diu a socorro de Dom João Mascarenhas, que então estava cercado dos Capitães delRei de Cambaia, e de então pera cá se não tratou mais deste descobrimento, que tão proveitoso parece que será para o bem comum destes reinos, se Nosso Senhor fosse servido que esta ilha [do Ouro] se viesse a descobrir.
(Peregrinação, capítulo XX)
Tinham viajado para a China em conserva com os quatro navios de portugueses que também carregavam pimenta em Banten, porém Chincheu estava em grande desassossego com revoltas do povo e a armada do aytao a patrulhar as costas por causa dos wokou, os corsários japões que assolavam as suas costas. Na impossibilidade de fazerem os seus tratos, decidiram rumar a Chabaquee, acabando por saltar da panela para o fogo, como soe dizer-se, porque ali estavam surtos mais de cem juncos que os acometeram, tomando três dos cinco navios, com a morte de muita gente das tripulações, incluindo alguns portugueses.
Escaparam ao ataque o junco de Martim Esteves onde ia Fernão e o de um mercador de Cochim, ajudados por ventos que os empurraram para sudeste, livrando-os dos seus perseguidores, mas lançando-os num mar por onde nunca tinham navegado. Não lhes durou muito tempo a bonança, porque logo lhes saltou um temporal medonho que apartou os dois navios para não mais se encontrarem. O vento soprava tão rijo de escarcéu e ondas cruzadas que não podiam socorrer-se das velas, com o junco ora a correr em árvore seca, ora pairando de través, com medo das restingas e baixios, de que era basto aquele mar desconhecido coalhado de pequenas ilhas e ilhéus desertos, por onde navegaram durante mais de um mês, sem acharem baía, praia ou enseada segura onde pudessem aportar.