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Quando o junco abriu um rombo e alagou a primeira coberta, foram forçados a alijar toda a fazenda ao mar e Fernão, desesperado por mais uma vez ter perdido a fortuna arduamente conquistada, sentiu-se esmagado por um sentimento de culpa que o vinha há muito tempo atormentando: a certeza de ser um réprobo, um excomungado, cujo pecado ou má estrela condenavam também à perdição os companheiros de viagem.

Quase todos os navios em que viajara haviam naufragado ou sido aprisionados por corsários e mouros inimigos, com morte e sofrimento de muita gente. Acreditava piamente que era vítima de uma qualquer maldição, feitiço ou mau olhado que alguém lhe lançara, decerto invejoso da protecção de Pêro de Faria, das missões a que ele o enviara e lhe tinham trazido momentânea fortuna. Um enguiço cruel e desmedido que o poupava sempre à morte para, todavia, o atormentar de remorsos, matando-lhe os companheiros, os amigos e até a mulher que mais amara. Já se fizera benzer por padres, homens santos e feiticeiras, sem resultado. Imprecado! Anatematizado, sem remédio.

Sentiu o embate antes de ouvir o aziago estrondo da embarcação contra uma restinga de pedras e a quebrar-se em quatro partes. Os seus piores receios confirmavam-se, com a perdição do barco e de muitas vidas. Com os olhos cheios de lágrimas benzeu-se e murmurou três vezes como lhe recomendara o padre: Dois to deitaram,/ Três to hão-de tirar:/ As três Divinas pessoas/ Da Santíssima Trindade.

Não adiantara. Afogaram-se sessenta e duas pessoas que caíram ao mar, muitas mais morreram na luta feroz travada entre os vinte e oito portugueses sobreviventes com os quarenta escravos e marinheiros chins, pela posse de uma jangada que estes fizeram e, armados com os seus machados, quiseram impedir a entrada ao seu capitão Martim Esteves e restantes folangjis.

A jangada era uma esperança remota de salvação, no entanto a ânsia de salvarem a própria vida dava forças e fereza de bicho acossado aos náufragos que, naquele instante, seriam capazes de sacrificar mãe, pai ou filho, sem hesitação. Durante a navegação tempestuosa, o desespero e o medo da morte tinham unido portugueses e gentios, senhores e escravos numa amizade que fora o arrimo de todos. Após o desastre, o instinto da sobrevivência varrera das suas almas quaisquer resquícios de humanidade e os amigos por quem, dias antes, diziam estar dispostos a morrer, eram agora inimigos mortais e seus algozes, que teriam de matar para poderem viver. Os portugueses, chefiados por Rui de Moura, lançaram-se de espadas desembainhadas contra os que se preparavam para soltar a jangada.

A rixa foi breve e crudelíssima, terminando com a morte de todos os chins e de vinte portugueses, naquele funesto sábado, dia de Natal. Fernão via repetir-se o seu fadário de naufrágio com morte de quase toda a gente e ele salvando-se com sete companheiros, para sofrer um novo calvário, uma via sacra de fome, sede, cativeiro e maus tratos. Oito era o seu número mágico, mas de uma magia negra, demoníaca, fatídica também para os que não morressem no instante do desastre.

Oito foram os cativos de Dragut no mar Roxo, oito também os de Calaminham, que se perderam no mundo ou morreram; no naufrágio da China, tinham-se salvo nove, mantendo-se vivos até ao momento em que Jorge Mendes os deixara e o amaldiçoado bando de oito fora arrastado para novos trabalhos.

Fernão mirava com horror as trinta e oito pessoas que seguiam com ele na jangada, sabendo de antemão que trinta delas estavam condenadas a morrer por sua causa, por isso seria tão culpado da sua morte como se as matasse com as suas próprias mãos.

Esgotada a água de beber e os mantimentos, os náufragos foram morrendo uns após outros, primeiro as crianças, em seguida as mulheres e os velhos. Os sobreviventes não passavam de animais, uma alcateia de lobos famintos, metidos na água quase até ao pescoço, agarrando-se com unhas e dentes à jangada de troncos. Andavam à deriva há tantos dias que lhes tinham perdido a conta, vogando ao sabor das águas e dos ventos, com uma colcha a servir de vela, sem uma agulha de marear para lhes indicar o norte. Sem forças para gritarem, chorarem ou rezarem, jaziam num silêncio alheado de mortos-vivos, guiados apenas pelo instinto de sobrevivência de bichos, forçados pela fome a comerem os da sua própria espécie, partilhando a carne e o sangue de um cafre que morrera.

Os seis portugueses juraram, por entre lágrimas, preferirem morrer a comer qualquer cristão, tendo de lutar contra o restante bando de famintos, para lançarem ao mar os corpos intocados dos dois portugueses que morreram. Quatro dias mais se alimentaram de limos e, quando já desesperavam da vida, avistaram terra, porém, com a comoção e o alvoroço da salvação, quatro dos quinze sobreviventes morreram.

Dos trinta e oito náufragos da jangada, apenas os sete portugueses e quatro moços, seus criados, desembarcaram na praia de uma formosa angra, onde se ajoelharam a dar graças a Deus por tê-los livrado dos perigos do mar e rogando-Lhe que velasse por eles na terra desconhecida, uma imensa ilha a que não alcançavam os contornos e parecia desabitada.

Acharam muito marisco pelas rochas e alguns estranhos animais que nunca haviam visto, os quais não pareciam assustados e se deixaram caçar à mão, matando-lhes a fome de muitos dias. Seguiram o rasto dos animais que os levou até um esteiro de água doce, que vinha desaguar no mar, onde finalmente saciaram a sede que os enlouquecia.

Um dos moços tinha uma pederneira para fazer fogo, permitindo-lhes cozinhar a caça e protegerem-se dos bichos, embora dormissem de noite no cimo das árvores, amarrados. Ali se deixaram ficar uns dias, sem saber o que fazer, nem que caminho tomar para achar gente, se por acaso a houvesse.

A barca que descia o rio, carregada de madeira, pareceu-lhes uma miragem, mas logo reconheceram que estavam salvos, quando os nove homens que nela vinham se lançaram à água como se tivessem visto um bando de demónios em figura de gente. Sete dos recém-chegados eram jaus, Fernão e Rui de Moura falaram-lhes algumas frases na língua dos mercadores, sossegando-os e eles acercaram-se para lhes fazerem perguntas. Os dois negros nus, de cabelos frisados como lã, eram parecidos com os da Guiné, embora mais pardos, empunhavam lanças com pontas de pedra e mostravam-se desconfiados, mantendo-se a uma distância segura.

– Levai-nos convosco para qualquer povoação – rogaram ao jau que parecia comandar o grupo, aguçando-lhe a cobiça, característica da sua raça –, onde nos podereis vender como vossos cativos a gente que nos leve a Malaca, porque somos mercadores ricos e lá lhes darão muito dinheiro por nós ou quanta fazenda quiserem.

Pareceram apiedar-se dos náufragos e acederam a levá-los, todavia, para sua segurança, teriam de lhes dar as armas. Os portugueses entreolharam-se em mudo conselho, hesitando em meterem-se indefesos nas suas mãos, mas não tinham escolha. Relutantemente, entregaram os mosquetes e arcabuzes, fiados na sua palavra e na protecção da Divina Providência, que mais uma vez virou o rosto, distraída.

Na posse das armas, os traiçoeiros jaus chegaram com a barcaça mais perto, fazendo sinal para que se lançassem à água e nadassem para ela. Dois moços e um português obedeceram, mas não chegaram sequer a meio do caminho, acabando na boca de monstruosos lagartos que os desfizeram em pedaços e os engoliram, deixando apenas um remoinho de sangue na água. Os jaus riam e aplaudiam, zombando do pavor dos oito náufragos que se achavam na margem do rio e por nenhuma coisa do mundo entrariam dentro de água.

– Vem cá! Vem cá! – bradaram-lhes os dois cafres nus. – Água! Água!

Fernão pensou que o medo lhe fazia ouvir vozes, pois os negros estavam a falar em português! Atolados na vasa, os oito infelizes mal se podiam mover e os dois cafres saltaram em terra com três jaus para lhes atarem as mãos, levando-os de rastos para a barcaça. Quando os dois negros se acercaram dele, Fernão arregalou os olhos de espanto, vendo que ambos traziam fios ao pescoço, um com uma medalha e o outro com uma cruz de ouro. O da medalha inclinou-se para o prender e Fernão viu a inscrição que tinha gravada. Soltou um grito ao reconhecer o nome de um dos descobridores da Ilha do Ouro, que havia desaparecido sem deixar rasto.