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SIÃO

Quando o Ser Supremo viu que era chegado o tempo do seu advento, escolheu o lugar e a mulher que haveria de o dar à luz e na cidade de Kapilavastu, na noite de lua cheia do solstício de Verão, a virtuosa Maha Maya, mulher do rajá, teve um sonho pertur-bador:

Os quatro arcanjos Guardiães do Mundo apareceram na sua câmara e transportaram-na no seu leito pelos ares até às montanhas dos Himalaias e depositaram-na sob a Grande Árvore Sāla, de sete léguas de altura, na Planície Carmesim. As suas rainhas levaram a mulher adormecida até ao lago Anotatta onde a banharam para a libertar de toda a mácula humana vestiram-lhe um trajo celestial, ungiram-na com óleos e perfumes, coroando-a com flores.

Na Colina de Prata erguia-se a bela mansão dourada, em cuja câmara principal as rainhas haviam preparado um leito, com a cabeceira virada a Oriente, onde deitaram Maha Maya sempre adormecida.

O futuro Buda, com a forma de um soberbo elefante branco desceu da Colina de Ouro, não longe dali. Segurava uma flor de lótus branca na tromba e, soltando um portentoso bramido, entrou na mansão dourada, dirigindo-se ao leito de Maha Maya, à roda do qual deu três voltas, curvando-se diante dela em obediência. Depois, tocou-lhe com toda a delicadeza no lado direito, que se abriu para o acolher no seu ventre.

No dia seguinte, ao despertar, Maha Maya contou o sonho ao rajá, seu marido. Disseram-lhe os brâmanes: A tua rainha concebeu um filho macho. Se ele escolher a vida laica, há-de ser um Monarca Universal; mas se deixar a sua casa e escolher a vida religiosa, tornar-se-á num Buda, que livrará o mundo dos véus da ignorância e do pecado.

E assim Buda foi concebido no fim do Festival do Solstício de Verão.

VIII

Se vires um elefante cagar, não tentes cagar tanto como ele

(Sião)

Carta do irmão Fernão Mendes aos padres da Companhia de Jesus:

No reino do Sornao197, que se chama Sião, onde fui por duas vezes, estive na cidade de Odiaa198, que é a corte d’el-rei, afirmo-vos que é a maior cousa que nestas partes vi. Esta cidade é como Veneza porque pelas mais das ruas se anda por água. Terá, segundo ouvi dizer a muitos homens, passantes de duzentos mil batéis pequenos e grandes. Se são duzentos mil ou não, eu não no sei, mas eu vi caminho de uma légua pelo rio sem poder romper com batéis, afora muitas feiras que se fazem nos rios, ao redor da cidade, que são como festas dos ídolos. E a cada uma destas feiras vão passante de quinhentos batéis e às vezes passam de mil.

Este rei se chama Precaoçale199 que dizem que quer dizer a segunda pessoa de Deus. Os seus paços não nos pode ver nenhum estrangeiro, senão os embaixadores somente ou quem se vai fazer seu vassalo; por fora são cobertos de estanho e por dentro mui guarnecidos de ouro.

Senta-se El-Rei num trono mui rico, ao redor do qual há umas tábuas de admirável artifício, numa das quais vão bailando donzelas e filhas de senhores principais, e noutra meninos, e noutra mulheres, e ele está no lugar mais alto.

Este rei chama-se Senhor do Alifante Branco, que é a maior dignidade que pode haver entre eles, porque tem um alifante branco, cousa que não se acha nas outras partes. Quando [este alifante] mija, põem-lhe debaixo uma bacia de ouro e com aquelas mijadas lavam o rosto todos os principais senhores do reino do Sião.

O cortejo parece interminável, contudo, sentado juntamente com outros portugueses na cadeira presa ao dorso do elefante, enquanto esperam a sua vez para se incorporarem nele, Fernão Mendes Pinto não se cansa de ver a infinita variedade de invenções dos participantes, os olhos pedindo sempre mais, assombrados com a pompa e a riqueza exibidas pelo Senhor do Elefante Branco. As nove ruas por onde vão desfilar estão engalanadas e embandeiradas como as de Lisboa por ocasião dos torneios ou festas reais; nos canais que recortam a cidade, perfilam-se os barcos de proas trabalhadas em forma de dragões e outros animais míticos, pintados de muitas cores, tendo ao centro pailós ou castelos de madeira dourada, enfeitados com pendões de seda, cheios de gente trajada de vistosos panos.

O aventureiro rejubila por poder desfrutar de um espectáculo que nenhum europeu, além dos portugueses, contemplou, tanto mais que só duas vezes em cada ano el-rei deixa os paços e se mostra com este grande estado aos seus súbditos, que acorrem de todos os lugares do reino para o verem e lhe renderem homenagem. Encenado segundo o regimento do cerimonial da corte, o cortejo é uma exibição de fausto e riqueza, com danças, representações e invenções minuciosamente ensaiadas, para deslumbrar quem as vê.

Hoje, um incontido frenesim de excitação trouxe multidões de siames para os canais e ruas da cidade. Beijam-se segundo o seu costume, esfregando os narizes e exclamando por entre umas fungadelas deliciadas: Muito fragante. Muito fragante!. Os moradores portugueses acham-nos um povo muito afável e belo, sobretudo as crianças e as mulheres, que gozam de grande liberdade, maior do que em qualquer outra terra do Oriente. Sejam baixas ou de posses, andam quase nuas, com um pano solto ou levemente enrolado da cintura até meio da perna e um lenço que lhes cobre parte do peito, deixando um ombro e por vezes um seio à mostra; untam-se com uma mistura de alvaiade ou cal com pó de açafrão, que lhes deixa a pele dourada e muito olorosa. Homens e mulheres comuns usam o cabelo cortado rente dos lados, com um tufo no alto em forma de escova e adornam-se com muitas jóias, de ouro e pedraria de primoroso labor.

Acodem aos magotes, para verem desfilar o mais imponente de todos os cortejos, desde o ano do Cavalo, de mil quinhentos e trinta e quatro, quando Chai Raja fora coroado. Hoje, neste auspicioso dia do ano do Dragão, de mil quinhentos e quarenta e cinco, celebra-se a sua vitória sobre os inimigos de Ayuthya, um falso triunfo, na medida em que o exército tivera pesadas baixas e o próprio rajá fora ferido, todavia, admiti-lo seria perder a face, o que não pode suceder. Além disso, o povo necessita de festa e alegria, porque, durante a sua ausência, a cidade fora pasto de um terrível incêndio que consumira templos, palácios e mais de dez mil casas.

Há muito que Fernão perdeu de vista a cabeça do desfile, composta pelos esquadrões de soldados, precedidos por um corpo de baile de formosas mulheres que lançam flores e águas perfumadas, aos quais se sucederam as ordens de monges de desvairadas seitas – que têm inúmeros pagodes, bralas ou templos, comuns a todos estes reinos, desde Pegu ao Calaminham. De cabeças rapadas, vestidos até aos pés com os panos amarelos que lhes deixam um ombro desnudo, mostram os estandartes e insígnias que o povo reverencia segundo a sua dignidade de grepos, talagrepos, rolins ou outras; para não cometerem o pecado de pôr os pés no chão, os bonzos principais, trajados de cetim verde e com estolas de damasco roxo pelo peito são transportados em palanquins aos ombros de outros sacerdotes, seus inferiores em dignidade. Acompanham-nos bandos de meninos com turíbulos, defumadouros de cheiros muito suaves e muitos instrumentos de música que marcam a cadência da litania com que abençoam a assistência.

Arranca agora o pelotão dos quartãos, quase duas centenas de ginetes, montados em cavalos ajaezados com grande primor, luzindo os seus trajos mais ricos, dos quais cinquenta são portugueses e vêm vestidos como cavaleiros e fidalgos de Portugal, por serem quase todos de boa geração e até da casa d’el-rei. Fernão saúda-os com orgulho e cortesia, por conhecer a maioria deles, que o acolheram muito bem.