Выбрать главу

Ainda lhe custa a crer que se encontra ali, prestes a desfilar num Triunfo, como um herói, quando não passa de um soldado de fortuna, ou antes sem ela, porque o seu mau Fado não lha deixa medrar. Ficara rico ao serviço do rei de Demaa, na ilha de Java, contudo, perdera toda a sua fazenda em mais outro horrendo naufrágio, a caminho da China – o quarto desde que pusera os pés na Índia. Andara à deriva semanas a fio numa jangada desprovida de tudo, com sete portugueses e alguns moços, forçados a alimentarem-se das carnes de um escravo cafre que morrera e dos limos que colhiam na babugem da água, para sobreviverem.

Tinham-se salvo por milagre, ao avistarem terra por alturas de Timor, mas fora saltar da sertã para o lume, porque, mal encalharam na praia, foram feitos cativos por uns pescadores papuas e vendidos como escravos. Nesse jogo do gato e do rato com que os Fados se divertiam à sua custa, de novo a este revés da fortuna se sucedera um golpe de sorte, e o senhor da ilha resgatara-os e enviara-os para Sunda, onde se achava uma armada de portugueses que os haviam acolhido até ao dia da partida. Sem um real de seu, aceitara o convite para embarcar no junco de dois portugueses que iam fazer tratos em Ayuthya e lhe emprestaram cem cruzados para recomeçar a vida.

Volta a atenção para o desfile das principais estâncias do cortejo, enquadradas pelas hostes dos seis mil guerreiros que compõem a guarda do rei. Um batalhão de duzentos elefantes de guerra avança em passo solene, como soldados bem treinados, ajaezados e aparelhados com cadeiras e castelos de madeira lavrada e pintada, onde se sentam os capitães e senhores do reino, competindo em riqueza e estado. Domingos de Seixas vai entre os príncipes da família real.

Embora tivesse participado nos combates de Pegu, Martavão e também nos deste mesmo reino de Ayuthya, onde vira elefantes de guerra em acção, Fernão sente um arrepio de comoção à passagem das gigantescas alimárias, adestradas pelos seus cornacas para, com as longas presas de marfim reforçadas por lâminas aceradas, esventrarem quem lhes passe ao alcance da fúria, não havendo força capaz de lhes aparar a investida. Passado o terror dos primeiros encontros com eles, nas conquistas da Índia, os portugueses tinham aprendido a enfrentá-los com manha e destreza, facto comprovado não só na tomada de Malaca, como ao serviço de Tabinshwethi e em muitos outros lugares onde os elefantes eram a força principal do exército. Mesmo assim, não ganhara para o susto quando, em plena batalha, uma destas bestas lhe passara a tromba por entre as pernas e o lançara pelo ar como se fora uma laranja; esbarrondara-se no solo com o estrondo de um pelouro e só por milagre (ou por a couraça lhe ter amortecido a pancada) se não esfanicara.

Estava ali por mérito próprio, tendo participado naquela guerra, integrado na hoste dos portugueses comandados pelo lendário Domingos de Seixas, que conhecera durante a sua primeira visita ao Sião, quando chegara a embaixada de Francisco de Castro enviada por Pêro de Faria para confirmar a morte ou resgatar o escrivão que, no ano de vinte e três, fora injustamente preso em Tenasserim com outros portugueses. Durante dezassete anos nada se soubera deles, até el-rei D. João III ordenar aquela embaixada a Ayuthya para a sua libertação, visto interessar mais à Coroa portuguesa a amizade com o reino de Pegu e o poderoso Tabinshwethi, do que com o Sião, cada vez mais fraco e ameaçado pelas nações que o rodeavam – Chiang Mai, Lan Sang e Phnom Pehn.

Pasmaram os embaixadores quando, em vez dos prisioneiros miseráveis que esperavam ver, Seixas lhes surgira como valido de Chai Raja, seu comandante de campo e dos restantes portugueses que viviam como soldados d’el-rei, com grandes soldos e privilégios concedidos por Sua Alteza em troca dos seus serviços. Espantaram-se igualmente os resgatados por essa lembrança tão tardia da parte das autoridades portuguesas e, percebendo o jogo de interesses da Coroa, recusaram-se a partir.

Do alto do seu castelo, vendo o turbilhão de cor, sons, gentes e animais que aos poucos se organizava numa grandiosa coluna muito bem concertada, onde cada figurante parecia conhecer de antemão o lugar que lhe competia, Fernão meditava sobre os estranhos desígnios e rumos que os Fados lhe traçavam, mudando-os a cada passo. Nesse tempo, estava longe de imaginar que, na sua segunda viagem ao Sião, voltaria a encontrar Domingos de Seixas, ainda mais rico e favorecido, servindo sob as suas ordens como mercenário, com outros cento e dezanove portugueses, nos exércitos do Senhor do Elefante Branco contra as forças do tirano Tabinshwethi, que tanto mal lhe causara.

Distrai-se com o alegre som da música dançada por bandos de homens, empunhando armas e simulando combates ou representando farsas, seguidos por ranchos de donzelas muito formosas, nos seus trajos cheios de cor e brilho, com toucados cónicos, em forma de pagodes bordados a ouro, movendo-se suavemente ao sabor da melodia das flautas, guizos e tambores, com passos lentos, gestos graciosos das mãos e do rosto, como quem conta uma história sem palavras.

Duas fieiras de meninas trazem cestos cheios de pétalas de flores que lançam pelo chão como um tapete perfumado, para a passagem do grande Elefante Branco, símbolo do poder do rei do Sião, tão raro entre os da sua espécie que os siames o tomam por uma criatura divina, cujo desaparecimento ou morte pode causar a perdição de Ayuthya. Fernão acha um desatino que reinos de tanta polícia travem crudelíssimas guerras pela posse de uma destas alimárias, apesar da sua raridade, contudo tal conflito existia desde o tempo da formação destas nações. Ele próprio ficara a conhecer a cobiça do tirano Tabinshwethi por estes elefantes, quando estivera com ele em Martavão e em Pegu. O rei de Bramaa, por ser senhor de maiores reinos e de mais gente do que Chai Raja, achava-se com mais direito à posse da venerada criatura e enviara uma grandiosa embaixada ao seu real vizinho a pedir-lhe um ou dois. A recusa zombeteira e a despropósito do senhor de Ayuthya afrontara Tabinshwethi, que jamais perdoava a quem o agravava ou lhe fazia perder a face e só não partira logo a dar-lhe guerra, por estar ocupado com o levantamento de alguns dos seus sawbwas no seu próprio reino – no entanto, os siames não perderiam pela demora.

Ei-lo que surge, rodeado por vinte e quatro criados munidos de sombreiros vermelhos de pé alto para lhe darem sombra! A poderosa alimária de pêlo branco-pérola avança majestosamente como um rei entre os seus vassalos, no meio de duas alas de elefantes, seis de cada lado, em cujos castelos se reclinam as esposas e concubinas de Chai Raja. A multidão baqueia de joelhos, deitando-se, não sobre os calcanhares, ao modo dos chins, mas de lado, com a testa a tocar o chão, mãos postas, erguidas acima da cabeça numa súplica ou agradecimento, abarcando o rei e a sua montada na mesma prece.

Na cadeira chapeada de ouro, semelhante a um trono, com cadeias grossas também de ouro que lhe cingem o torso como cintas, vai sentado com grande esplendor Chai Raja, o Vitorioso, graças ao médico português que lhe cuidou do ferimento e o salvou da morte. A seu lado leva a formosíssima Sri Suda Chan, a consorte favorita a quem satisfaz todos os desejos, e aos pés, em postura submissa, o pequeno príncipe, refém e penhor da vassalagem da rainha Chira Prapha, sua mãe, que favorecera os rebeldes.

Escarranchado no enorme cachaço do elefante, com um terçado de ouro na mão e uma aljava cheia de dinheiro, o pajem do rei lança punhados de moedas ao povo. Fernão avalia a quantidade de ouro que o bicho traz sobre si e pensa, com um misto de raiva e inveja, que bastavam as cadeias de várias voltas do seu imenso pescoço (sem meter no cômputo o enorme globo do mundo que traz suspenso da sua tromba) para fazer dele um homem rico para o resto da sua vida.

– Há alimárias com mais sorte do que gente! – suspira, agarrando-se ao bordo da cadeira que oscila fortemente quando o seu elefante se põe em marcha para se juntar aos trinta grandes senhores do reino que completam o séquito do divino animal. Atrás deles, uma guarda de três mil homens, todos em uniforme de gala e muito bem armados, formam a cauda do cortejo.