Assaltam-no recordações vivas da sua primeira viagem ao Sião, no ano de mil quinhentos e trinta e nove, em que fora vender umas fazendas chinesas de Pêro de Faria a Patane – porto principal da península malaia para os juncos dos tratos da China, visto ser uma derrota mais curta do que a de Malaca. Terminado o negócio, vira chegar António de Faria como embaixador do capitão, para assentar de novo as pazes com el-rei de Patane e agradecer-lhe o bom tratamento dado à gente lusa, embora isso não passasse de um rebuço para tratar com ele dos negócios da mercancia, a coisa que mais importava, não só a Pêro de Faria, como a todos os portugueses da Índia, em particular aos que andavam nos tratos por conta própria, fora da alçada da Coroa. O embaixador trazia uma carta, acompanhada de um belo presente, mandado em nome d’el-rei de Portugal e à custa da Fazenda Real, como sempre fazem os capitães das fortalezas ou das armadas, para colherem os frutos dos tratos em seu próprio proveito ou dos seus amigos.
Despachada a bom contento a embaixada, António de Faria procurara vender uma carga de roupas da Índia, no valor de uns onze mil cruzados, a verdadeira razão que ali o trouxera; porém, esses panos eram de tão má digestão em Patane, que não achara quem lhos comprasse, mesmo a baixo preço. Ouvindo que a cidade de Lugor, cem léguas a norte, era um porto de grande escala, sobretudo para os juncos de Java que resgatavam esses panos por ouro e pedraria, o embaixador tratou de fretar um navio para lá mandar Cristóvão Borralho por feitor da veniaga.
Fernão embarcara com ele, longe de imaginar que aquele encontro com António de Faria e o posterior roubo do navio por Coja Acem seriam um marco, um ponto de viragem na sua peregrinação pelo Oriente mais longínquo, metido na pele de um corsário, com Cristóvão Borralho por seu maior amigo e companheiro de aventuras.
Depois do assalto de Coja Acem, de que escaparam com vida lançando-se ao mar e nadando para terra, Fernão e Cristóvão haviam sido salvos por uma bondosa siame que os levara para sua casa e cuidara deles até se restabelecerem. Fora então que os dois náufragos, sem um real no bolso que não fosse de esmolas, se viram forçados a alistar-se no esquadrão de Domingos de Seixas e a participar nos combates de Chai Raja contra Tabinshwethi que ocupara a província de Chiang Krai, tributária de Ayuthya.
Fernão ficara a conhecer a história do ambicioso rei do Sião, desde a sua tomada do poder, quando, no ano da Serpente de mil quinhentos e trinta e três, um surto de bexigas, trazidas por um navio português ao porto de Kua, assolara o reino e vitimara milhares de siames, entre os quais, o rei Boromma Raja, o quarto deste nome, que deixara como sucessor o seu filho Ratsada, de cinco anos de idade. Para Chai Raja, governador de Pitsanulok e meio irmão do rei morto, fora como se os deuses lhe quisessem oferecer o trono de mão beijada ou o desafiassem a tomá-lo: quatro meses após a coroação do príncipe Ratsada, aproveitando-se do descontentamento provocado pela má regência da rainha, sua mãe, não hesitara em abandonar o governo da província do Norte para vir com o seu exército conquistar o poder.
As hostes de soldados endurecidos nos confrontos com os bramaas da fronteira não acharam resistência na cidade e assaltaram os paços reais que tomaram quase sem luta. Chai Raja assassinara o sobrinho e fizera-se coroar rei de Ayuthya, governando desde então, coadjuvado pelo seu irmão Thien Raja, nas províncias do norte, com constantes sobressaltos de invasões, revoltas e traições, logo esmagadas pelos seus exércitos, reforçados pelo esquadrão de artilheiros e arcabuzeiros portugueses.
Para Fernão, esta segunda viagem ao reino do Sião fora uma desesperada tentativa de fazer algum dinheiro, depois do desastre de Sunda que o deixara de novo na indigência. Os cem cruzados emprestados pelos dois mercadores portugueses que o haviam trazido no seu junco, conseguiriam um bom lucro na compra de mercadorias para os tratos na China, aonde iriam logo que a monção de sudoeste lho consentisse.
Afinal, com a sua costumeira pouca sorte, tudo dera em vaza-barris! Havia já comprado a mercadoria e ultimava os preparativos para a viagem, quando chegara a Ayuthya a notícia de uma grande revolta na cidade fronteiriça de Chiang Mai, do reino de Lan Na, cujos mandarins se tinham dividido em dois partidos sobre o pagamento das páreas de vassalagem devidas ao rei de Bramaa.
Nas últimas pazes que assinara com o rei do Sião, Tabinshwethi impusera como condições que Chai Raja ficasse seu vassalo, lhe desse uma filha sua por esposa e, a cada ano, lhe enviasse um dado número de elefantes de serviço e uma formosa donzela, filha de um dos seus mandarins principais, para o seu harém. O tirano recebera a princesa por mulher e retirara-se para o seu reino, tendo-lhe o sogro pago fielmente as páreas acordadas, todos os anos, até ao presente, em que os mandarins de Chiang Mai se levantaram contra o rei Khet Muang Klao, recusando-se a entregar a moça, quando a embaixada bramaa chegara para a receber.
– Tabinshwethi não gosta de mulheres e trata-as com muita crueza – queixaram-se no conselho d’el-rei.
– Só as quer para escravas. Ou para as dar aos seus favoritos.
– Porque havemos de sujeitar as nossas donzelas a um destino tão funesto?
– Dá-lhe os elefantes, mas não as nossas filhas – teimou o pai da donzela escolhida.
O rei Khet, com medo de quebrar as pazes com o temível Bramaa, insistira em cumprir o tratado, os mandarins descontentes tinham-no assassinado e passado à espada um grande número de gente fiel a Ayuthya. Outra história que corria era a da loucura do rei que levava o reino a perder e, por isso, tivera de ser afastado, mas vá-se lá a saber a verdade!
Chai Raja, muito afrontado com o regicídio dera ordens para armarem um arraial de tendas de campanha na outra margem do rio, onde se alojara para melhor cuidar da preparação do seu exército e mandara lançar pregões por toda a cidade, a convocar os homens para a guerra, sob a ameaça de terríveis castigos aos desobedientes ou desertores, que fizeram estarrecer de medo, tanto os siames como os estrangeiros:
Todo o homem, que por aleijão ou velhice não seja escuso de ir com el-rei a esta guerra, se faça prestes em termo de doze dias, sob pena de morrer queimado com infâmia perpétua a todos seus descendentes, e confiscação de seus bens para a coroa.
As mesmas penas seriam aplicadas a todos os estrangeiros que não saíssem do reino no termo de três dias. Sendo este prazo impossível de cumprir para a maioria da gente, o exército de Chai Raja não tardara a ser engrossado com milhares de soldados e cavaleiros das mais desvairadas nações e raças.
Por serem os portugueses a gente guerreira mais respeitada no Sião, o combracalão ou phra khalang, o ministro encarregue dos negócios marítimos e dos estrangeiros, honrara-os com a sua visita no Ban Portuguet, o campo português de Ayuthya, assente nuns terrenos rodeados por um canal do rio Chao Phraya como uma ilha, concedidos por Ramathibodi II a Duarte Coelho para povoação e morada dos portugueses, confirmados pelos seus sucessores, como recompensa pela ajuda militar dos lusos, quer como soldados quer no ensino das armas que lhes tinham alcançado grandes vitórias. A praça principal, onde ainda se erguia a grande cruz de madeira que Duarte Coelho tinha chantado quando ali viera, trinta anos antes, enchera-se com os residentes e mercadores convocados por Domingos de Seixas, que receberam o combracalão fazendo a zumbaia devida ao seu alto estado, de joelhos e batendo por três vezes com a testa no chão.
– Sua Alteza me manda rogar-vos em seu nome – anunciara, com uma amabilidade pouco usual nos ministros da corte –, por serdes quem sois, que o queirais acompanhar de vossa vontade nesta sua jornada. Chai Raja deseja muito entregar-vos a guarda de sua pessoa, por conhecer que sois mais para isso que todos os outros povos.
Para ajudar à eficácia do seu recado, acrescentara generosas promessas de grandes pagas, mercês, e honras: