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– Sereis isentos do pagamento dos tributos sobre todas as mercadorias – lançara, sabendo ser aquela promessa a que mais poder tinha para convencer os estrangeiros e, depois de uma pausa, como se buscasse coragem ou lhe custasse a engolir, acrescentara a custo: – Sua Alteza dá-vos licença para fazerdes igrejas no reino e. está disposto a converter-se à vossa Lei, embora em segredo, para não causar revoltas do povo, em tempos tão conturbados.

Acabada esta fala, partira, deixando os portugueses varados de espanto.

– Chai Raja quer fazer-se cristão? Que sabe ele da nossa Fé?

– Quando el-rei me convoca à sua presença – disse António de Paiva, um dos mercadores mais ricos do Sião, homem fidalgo, letrado e de siso, por quem el-rei mostrava particular amizade, chamando-o amiúde ao palácio – procuro falar-lhe de Cristo e da nossa santa religião que, segundo ele crê, não difere muito dos ensinamentos de Buda. Ele ouviu sempre as minhas palavras com muita aceitação, no entanto, nunca pensei que quisesse abandonar as suas crenças.

– Não duvido de que o diz só para assegurar a nossa participação na guerra. Contudo, Deus escreve direito por linhas tortas.

– Se nem padre há entre nós, como se há-de baptizar el-rei?

– Não podemos desperdiçar a ocasião de trazer para a Cristandade um rei tão poderoso – argumentou Fernão. – Na impossibilidade de mandar vir um padre de Malaca ou Goa, sendo António Paiva tão conhecedor dos preceitos da nossa Igreja, poderá administrar o baptismo a Chai Raja, como se faz às crianças que vão morrer e ainda não receberam o sacramento na igreja ou como já vi fazer aos gentios moribundos que se querem converter.

Custava-lhe a crer, no entanto, que um rei que adorava um deus, representado no seu templo como um ídolo sentado num tamborete, na posição de quem se esforça a fazer câmaras e a esvaziar a tripa, pudesse vir a ser um bom cristão.

Durante algum tempo debateram o melhor modo de fazer a celebração daquele santo sacramento, sem cometerem blasfémia ou heresia, crentes de que, se não se fizesse antes da partida para a guerra, a eterna salvação de Chai Raja ficaria comprometida, quer pela sua morte, se fosse vencido, quer pela sua previsível recusa, se regressasse vitorioso. Contudo, a escolha do momento para a sua conversão dependia dele e nada mais podiam fazer senão cumprir-lhe os desejos, prestando-lhe a ajuda militar requerida.

Da centena e meia de portugueses que estavam em Ayuthya, cento e vinte aceitaram o prestigioso cargo de guarda pessoal d’el-rei, acompanhando-o e protegendo-o em todas as batalhas, com os seus mosquetes e arcabuzes de tiro certeiro, escudando-o com os seus peitos couraçados de aço, contribuindo para a sua vitória e partilhando do seu triunfo.

Os terríveis castigos prometidos aos desertores surtiram o efeito desejado, porque, nos doze dias do termo do pregão, se reunira no campo das tendas um fortíssimo exército de algumas dezenas de milhar de homens e quatro mil elefantes, cujo comando foi entregue a dois turcos e ao português Domingos de Seixas que, à ordem d’el-rei, se puseram a caminho, avançando para a raia do norte, a fim de evitar que Tabin-shwethi ou qualquer outro aliado de Chiang Mai, aproveitando-se do conflito, viesse fazer razias nos campos e povoações do Sião.

A primeira vitória coubera aos revoltosos com ajuda dos bramaas, que atacaram os batalhões da retaguarda, causando-lhes pesadas baixas. Vendo o desastre, Domingos de Seixas elaborara novo plano de combate, que Chai Raja pusera em prática com muito êxito, porque os siames, encorajados pelos portugueses que lutavam a seu lado, se bateram ferozmente com os seus adversários. Por fim, a artilharia do esquadrão português, a cavalaria dos turcos e o batalhão dos elefantes concentraram forças num derradeiro assalto, espalhando a destruição entre as alas dos bramaas, que se retiraram deixando o terreno coalhado de mortos.

Chai Raja quisera festejar a vitória com o castigo da rainha Chira Prapha – a regente de Chiang Mai que se tinha bandeado com os rebeldes –, destruindo e pondo a saque todas as cidades que encontrara no caminho para a capital, que jurara destruir. Todavia, não chegara a disparar um só tiro de arco ou de arcabuz contra a cidade que parecia deserta, porque, no instante em que ia dar a ordem para o ataque, as portas de Chiang Mai abriram-se para dar passagem ao maior e mais formoso cortejo que Fernão vira em toda a sua vida.

Milhares de mulheres, cantando e dançando, traziam nas mãos ou em pequenos andores ou charolas, ricos presentes de flores e perfumes que iam depor aos pés do vencedor. Por último, numa liteira semelhante a um trono, transportada em ombros por vinte hercúleas portadoras, apresentara-se a deslumbrante Chira Prapha, languidamente reclinada, seminua e adornada com preciosas jóias de ouro e pedraria, para se entregar a Chai Raja como o mais magnificente e raro de todos os espólios.

A capital fora poupada em troca de um tributo de sessenta mil ducados portugueses por ano e o príncipe herdeiro, de nove anos de idade, prestara homenagem ao conquistador, que o trouxe como refém para Ayuthya, a fim de o exibir em troféu no seu desfile de triunfo e manter em obediência a rainha sua mãe.

Disto foi testemunha Fernão Mendes Pinto, por felicidade nossa, visto ser graças ao seu relato dos sucessos em que tomou parte activa, bem como dos muitos casos ouvidos a quem os testemunhou que, quinhentos anos mais tarde, a sua narradora lhos pôde apresentar, caro leitor, como se os tivesse vivido, pensado e sentido na pele de cada personagem. Assim o fará no próximo capítulo com a bela e pérfida concubina Sri Suda Chan.

197 Cornau ou Sarnau eram outros nomes do reino do Sião, usados na primeira metade do século XVI.

198 Ayuthia, Ayudhya ou Ayutthaya – nome completo Phra Nakhon Si Ayutthaya – era a antiga capital do Sião, situada numa ilha, 40 milhas a norte de Banguecoque.

199 Phra Chao Chang Pheuak – Senhor do Elefante Branco.

IX

Belo rosto coração de tigre

(Sião)

De cada ninho o macho

Voa para competir,

Buscar comida para a companheira,

velozmente mergulhando e voltejando.

O príncipe viu estas aves.

Sentiu-se só, sofreu com constância,

Mas teve saudade da doce esposa

Quando a solidão se insinuou.

Cada espécie de árvore

Cresceu na vasta floresta.

Disperso o pólen, libertando

celestes, deleitosos perfumes,

Flores desabrocham em grinaldas

Cachos e ramos.

(Dos Contos do Príncipe Sammutakote200)

O leito do canal Pla Mo parece refluir de susto à passagem dos dragões, serpentes, cavalos e outras míticas criaturas de pescoços empinados, fauces escancaradas, com dentes acerados e línguas pendentes de predadores. Nas últimas horas da segunda noite do crescente, emergem das sombras como uma horda de monstros farejando as presas na caçada.

Os cânticos marcam o ritmo dos remos e as chusmas das laulees dos cortesãos e servidores de Khun Worawongsa, esforçam-se por acompanhar as remadoras da barca real, que segue na frente, refulgindo nas chamas trémulas dos archotes e lanternas, ostentando orgulhosamente os estandartes e símbolos da antiga dinastia Uthong, de novo no poder.

No coberto do barco, que se assemelha a um templo ou palacete de madeiras finamente trabalhadas em graciosos minaretes com agulhas douradas, a rainha Sri Suda Chan, descendente dos primeiros reis de Ayuthya, reclinada no seu leito, sente uma opressão no peito, como um mau presságio que não a deixa saborear o momento da vitória e da sua consagração. Nem a presença do rei, seu marido, que joga com o pequeno Sri Sin, nem a filha que esbraceja no colo da ama ou os mexericos e gracejos das suas aias logram dissipar as nuvens sombrias que parecem adensar-se com o raiar da manhã. A imagem do abutre a voar em círculos sobre o palácio não a deixa sossegar.

Já vai a meio o nono mês do ano do Macaco, de mil quinhentos e quarenta e oito, um ano sumamente auspicioso que lhe propiciara a tessitura sem falhas de todos os desígnios, enredos e jogadas perigosas que concebera, permitindo-lhe a consumação das suas ambições do poder e do amor com que sempre sonhara. Assim lho profetizara a bisavó, a mais velha descendente dos Uthong, que vivia encerrada no seu paço, com a lepra a corroer-lhe o corpo e a fazer-lhe mais clarividente o dom da visão.