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Depois de ouvir o traslado, a rainha faz uma curta pausa e o seu rosto toma uma expressão resignada, prosseguindo todavia com as suas perguntas:

– É grande o poder que el-rei de Portugal tem na Índia? Quantas fortalezas tendes lá? Em que terras estão?

A conversa dura toda a manhã, até Sabla Vangél se quedar satisfeita com as respostas, dando-lhes então permissão para se retirarem.

Não voltou a chamá-los durante os dias que permaneceram na fortaleza, onde os mandara alojar, a fazerem os preparativos para regressarem ao navio. Vem assistir à sua partida, fora das suas casas para mais os honrar, despedindo os quatro emissários com presentes de ouro no valor de duzentos e quarenta cruzados, uma verdadeira fortuna que eles agradecem de joelhos, beijando-lhe a fímbria da veste.

– Pesa-me de vos ver ir tão cedo, mas já que é forçado ser assi, que a vossa tornada à Índia seja em muito boa hora e que lá vos recebam como Salomão recebeu a nossa rainha de Sabá14.

Sabla Vangél dá-lhes um capitão e vinte guerreiros para escolta e protecção, muitas mulas com mantimentos para a jornada e entrega a Vasco Martins de Seixas um rico presente para o governador, com uma carta a pedir-lhe socorro de gente armada. Para reforçar o seu pedido vai também um bispo abexim que o governador deverá enviar a el-rei de Portugal.

O numeroso bando chega ao porto de Daqhano sem sofrer nenhuma contrariedade e os portugueses embarcaram logo nos batéis que os levam à Silveira para fazerem o relatório aos capitães que ali tinham reunido o conselho dos seus oficiais para os ouvirem.

Fora auspiciosa a primeira empresa de Fernão, contudo, à saída do Reino do Preste João, a Fortuna caprichosa, que haveria de o perseguir sem descanso daí por diante, vai atirá-lo para as mãos do corsário Soleimão Dragut.

Os capitães das fustas iam tão cegos pela ganância de fazerem presas das três gelbas15 e terradas16 mouras surtas num ilhéu, junto à ponta do Gocão, que só deram pelo seu erro quando já era tarde demais.

– Não são gelbas, são galeotas dos turcos do Soldão! Aos remos, para a volta de terra! – brada o capitão da Silveira ao piloto e ao mestre, ouvindo a grita dos turcos que, ao vê-los tentar a fuga, já lhes vêm no encalço com os três navios de velas desfraldadas e enfunadas pelos ventos que lhes correm de feição e as fazem voar.

Mais pequenas do que as galés, de uma só árvore17 com vela latina e casco mais reduzido, as galeotas ofereciam menor resistência ao vento, eram mais velozes e mais fáceis de manobrar do que as galés, por serem movidas a remos por chusmas de gente livre cujo número chegava aos dois terços da tripulação. Cada embarcação tinha vinte e cinco bancos por banda com três remadores por banco, a remarem com tal cadência e força que em menos de três credos caíram sobre os portugueses como falcões sobre pombas assustadas.

Formadas em meia-lua, ao chegarem a alcance do tiro, dispararam em uníssono as bombardas que tinham fixas à popa acertando em cheio em ambas as fustas. Além das chusmas, cada embarcação trazia cerca de vinte azaps – uma guarnição de escol de marinheiros que eram também guerreiros e bombardeiros –, e cerca de cinquenta janízaros, formidáveis combatentes.

Na confusão de fogo, fumo, destruição e gritos, Fernão não pode ver o que se passa com a Santa Cecília, mas não deve ser diferente do caos que se instalou na Silveira. Nove homens foram feitos em pedaços, outros vinte e seis ficaram tão feridos que não podem tomar armas, nos barcos imobilizados, à mercê dos assaltantes, porque os sobreviventes das chusmas se lançaram ao mar, procurando salvar-se a nado.

As galeotas arribam sobre as fustas, enganchando-se nelas, de modo a, da popa, poderem ferir os portugueses às lançadas, enquanto os seus archeiros disparam os arcos e as bestas sobre tudo o que se move nos conveses, outros lançam artifícios de fogo como panelas de pólvora e petardos, a fim de protegerem os que preparam a ponte de cordas para a abordagem. Os cristãos resguardam-se com os paveses e defendem-se com tiros de arcabuz e de mosquete, porém, sem tempo para os recarregarem, vêem-se forçados a trocá-los por lanças ou piques e logo por espadas e punhais para o corpo a corpo.

Perdida toda a esperança de salvação, os quarenta e dois portugueses das duas fustas que ainda podem lutar, seguidos por doze criados fiéis e animando-se uns aos outros, lançam-se num ataque simultâneo sobre a capitânia dos turcos e, com o ímpeto do desespero, logram varrer da popa à proa os surpreendidos janízaros, matando vinte e sete.

Vendo a capitânia em perigo, as duas outras galeotas lançam-se em seu socorro e, da que chega primeiro, saltam para o convés quarenta azaps, de mangas arregaçadas até aos cotovelos, brandindo os alfanges, soltando gritos de guerra com grande furor e sem temor da morte, fazendo perder o ânimo aos cristãos feridos e já sem forças, exauridas pelo duro combate anterior.

Terminada a contenda, enfarruscado da pólvora e manchado de sangue, seu e dos inimigos, Fernão Mendes é arrastado para junto dos restantes sobreviventes, apenas onze dos cinquenta e quatro que tinham feito a abordagem. Os vencedores, reunidos na tolda, apupam-nos e enchem-nos de insultos, pondo os dedos em cruz e cuspindo-lhe em cima, proferindo muitas blasfémias.

Os esquifes que tinham lançado à água para recolher os náufragos bons para o serviço dos remos ou para serem vendidos como escravos, regressam vazios, enchendo a tripulação de sanha, pois sem tomarem presas os soldados não recebem paga. O mestre da capitânia, acompanhado de um renegado italiano que lhe serve de língua, vem examinar os prisioneiros para separar os de melhor condição que lhes possam render um bom resgate das famílias.

Os portugueses sabem que o papel do intérprete que acolita o mouro é fazer-lhes perguntas ardilosas para os desmascarar, se acaso esconderem as suas origens nobres ou abastadas, pelo que o mais seguro será fingirem não perceber a língua e fazerem-se passar por gente baixa, rogando a Deus a graça de serem poupados ao serviço dos remos. Um a um, o mestre examina-lhes a aparência, os modos como respondem às perguntas, as suas roupas e as mãos em busca das calosidades feitas pelas duras fainas ou da macieza causada por uma vida ociosa e rica.

Dividido entre o medo e a curiosidade, Fernão não consegue desviar os olhos do temível corsário Soleimão Dragut, capitão-mor da frota dos turcos que viera postar-se diante deles, em silêncio, para saborear a vitória e decerto saciar a sua vingança sobre os odiados cristãos. Os portugueses conhecem bem a sua reputação, que lhe granjeara o respeito de aliados e inimigos.

Como todos os que navegavam pelo Mediterrâneo ou pelos mares da Arábia nos últimos anos, Fernão cansara-se de ouvir histórias a seu respeito, onde o terror se mesclava com a admiração pelos seus feitos. Dragut era filho de camponeses de uma terreola dos arredores de Rhodes e guardara rebanhos na sua infância; com a idade de doze anos, fora levado para o Cairo por um oficial bombardeiro que lhe ensinara a sua arte, na qual em breve se fizera melhor do que o mestre. Ansioso por ganhar fortuna, partira para Alexandria e lançara-se no corso a bordo de um pequeno bergantim, tomando muitas presas cujo saque lhe permitira armar a sua própria galera, não tardando a enriquecer e a fazer-se poderoso.

A fama de Khair ed-Din, o Barba-Roxa, atraíra-o de seguida a Alger a fim de se juntar ao formidável corsário que aterrorizava o Mediterrâneo. Dragut capturou em pouco tempo inúmeros barcos de mercadores cristãos e a sua reputação de bom piloto e grande artilheiro levara Barba-Roxa a contratá-lo para capitão de uma armada de doze galés com a qual se dedicara a fazer constantes razias nas costas da Sicília e de Nápoles.

Com o recrudescer da rivalidade e dos confrontos entre os portugueses recém-chegados e os muçulmanos há muito estabelecidos na Índia, Dragut achava-se em missão de espionagem e inspecção ao mar Roxo, ao serviço de Soleimão, o Magnífico, quando as duas fustas se tinham vindo incautamente meter na boca do lobo. Com este mau passo Fernão Mendes Pinto iniciava, sem o saber, o rol de desventuras que haviam de fazer dele o mais martirizado de todos os aventureiros do Oriente onde, no decurso de vinte e um anos, seria feito treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macassar e Samatra.