– Boon Sri é, como tu, do sangue real dos Uthong – dissera-lhe na sua voz enrouquecida de feiticeira – e ambos deviam estar no trono. Mas ele ocupa um miserável posto de curador de ritos e de pagodes e tu, em vez do título de rainha que te é devido, és apenas uma das quatro concubinas principais. Deste modo, os usurpadores Suphannaphum humilham os herdeiros da estirpe dos primeiros reis, quando devia ser um filho vosso a herdar o reino e a restaurar a nossa dinastia.
As palavras da velha princesa foram a chispa que lhe ateara a paixão desmedida por Boon Sri e a levara ao adultério, sem se importar com o risco que corria. Por ele jogara um jogo perigoso em que apostara tudo, incluindo a própria vida, e ganhara. O humilde brâmane curador do pátio exterior dos pagodes, que soubera enfeitiçá-la com a sua beleza e voz admirável, é agora Khun Worawongsa, o novo rei dos reis do Sião, coroado havia quarenta e dois dias, depois de removido o último obstáculo do seu caminho, o rei Yot Fa, o filho que concebera de Chai Raja.
Rodeara-se de parasitas dependentes dos seus favores, a fim de lhe conseguir primeiro a regência e logo a coroação, mas sabe que o trono ainda não está seguro. Embora se tivessem desembaraçado de quase toda a oposição, há muitas famílias nobres das outras três dinastias que a odeiam, acusando-a das mortes de Chai Raja e de Yot Fa, conspirando para a sua perda, chefiados pela ardilosa princesa Suriyothay, da dinastia Sukhothai.
Se esta caçada fosse bem sucedida e Boon Sri tomasse com as suas próprias mãos o divino elefante, símbolo do poder real, conquistaria o título de Senhor do Elefante Branco e com ele a confiança e devoção do povo. Por isso, concordara com a expedição às florestas de Lopburi, apesar dos maus pressentimentos, sobretudo, por esse convite ter partido do príncipe do Camboja, o filho adoptivo de Chai Raja e seu aliado.
O ano do Galo que se avizinha, segundo lhe vaticinara a bisavó, será propício à consolidação dos seus negócios e alianças, contudo não pode descurar os inimigos. Se Boon Sri caçar a sua presa, ela tratará de se desembaraçar sem demora da perigosa Suriyothay que não se poupa a esforços para os derrubar e pôr no trono o seu marido, Phra Thien, o meio irmão de Chai Raja. Ele é o espinho das suas vidas, a sua maior ameaça, apesar de se ter refugiado num templo, fazendo-se monge para escapar à prisão e morte por conspiração no assassínio do rei, de que ela o acusara.
Para seu maior desassossego, os espias tinham-na informado de que Suriyothay recebera a visita do seu parente Khun Phiren, descendente dos reis Sukhothai e comandante do poderoso exército do norte. Faziam parte das crónicas secretas da corte de Ayuthya os seus amores de juventude, contrariados pela família, que forçara Suriyothay a casar com o príncipe Thien. Aquele encontro secreto era a prova de que a sua adversária conspirava contra eles e convocara um poderosíssimo aliado.
A lembrança dos rivais crispa-lhe o rosto de ódio e a sua fiel Prik, a extensão armada do seu braço, sobressalta-se com o fogo negro dos seus olhos. Olhos de serpente, em cujo ano nascera e cujo espírito encarnara, com um fascínio a que nenhum homem, velho ou moço, sábio ou néscio, podia ou desejava resistir. Um poder que, apesar da sua juventude, a fizera sobrepujar-se às quinhentas mulheres do harém real, ascender do anonimato à posição de concubina de primeira ordem e daí a consorte-não-real de Chai Raja, lugar que lhe abrira as portas do poder e de alguma liberdade que ela soubera aproveitar com mestria.
No ano da Cabra, de mil quinhentos e trinta e cinco, a rainha Jitravadee morrera a dar à luz, abrindo o caminho para a sua ascensão ao lugar de consorte favorita. Graças à sua natureza voluptuosa e sabedoria nas artes de sedução (reforçadas pelo nascimento dos filhos Yot Fa e Sri Sin, concebidos por frio cálculo), conseguira grande ascendente sobre o rei e consolidara o seu poder, o que a fazia ser temida, se não respeitada por todos os clãs das três dinastias rivais: Suphannaphum, Sukhothai e Prasat Thong.
Chamara para o seu serviço no palácio apenas gente da casta Uthong, parentes ou aliados, começando pelas mulheres – a governante Prik que daria a vida por ela, as aias, as açafatas, as guerreiras da sua guarda pessoal e das suas casas, as portadoras dos seus palanquins e as remadoras do seu laulee, as servas e escravas – e, aos poucos, fora substituindo por amigos fiéis alguns oficiais e servidores antigos que se demitiam dos seus postos ou morriam inesperadamente.
A sua paixão por Boon Sri fora obra do destino e estava escrita nos céus. Acontecera no ano da Serpente, de mil quinhentos e quarenta e cinco, o signo propício aos amores proibidos, aos escândalos mais danosos e aos negócios escuros, assim como fonte de tumultos, sedições e revoltas que quase sempre levavam a golpes de estado. Durante uma das suas visitas à bisavó, ao atravessarem o pátio exterior das estátuas de Buda, vira um jovem brâmane a oficiar os ritos, escutara a magia do seu canto e o seu coração abrira-se como uma flor tocada pelo sol.
Soubera pela Princesa Velha que ele pertencia à estirpe dos reis Uthong e fora desapossado dos direitos e posição que eram seus por nascimento. De regresso ao palácio, ainda turvada de emoção, jurara diante dos seus pagodes restituir Boon Sri à sua nobre condição. Por sugestão sua, Chai Raja quisera ouvi-lo cantar e ele surgira com todo o fulgor da sua juventude, o corpo escultural quase nu, com a tanga branca de brâmane a cingir-lhe os rins e o sexo, o longo cabelo brilhante e negro como a asa de um corvo a emoldurar o rosto de uma beleza comovente.
Cantara para ela, não para el-rei, ousando olhá-la com os seus olhos de um negro aveludado, apanágio dos homens do seu clã. O cântico sagrado, em vez de lhe apaziguar a alma, incandescera-lhe o corpo insatisfeito, esse corpo que Chai Raja tomava ao capricho da sua vontade, exigindo ser servido sem servir, satisfazendo-se sem a comprazer, retirando-se saciado e deixando-a faminta. A sua condição de concubina real, embora favorita, era a de uma mulher malograda, defraudada dos seus sonhos de amor e de prazer no leito de um homem que não desejava, confinada desde a mais tenra juventude ao harém do palácio, um gineceu a fervilhar de intrigas, invejas e ódios.
Deixavam-na indiferente os sete guizos de ouro que Chai Raja ostentava orgulhosamente no seu membro, como prova da sua virilidade, tendo de recorrer à sua perícia na arte de bem fingir e a todos os artifícios e invenções em que a sua imaginação era fértil, para que o seu corpo se movesse com cadência, ardor e ritmo, segundo os acordes do instrumento de amor de Sua Alteza, para que a desejasse cada vez mais e a procurasse sempre. Escondendo o asco e a rebeldia no prazer simulado dos suspiros e gemidos, na boca sôfrega que não saboreia a doçura da língua, na vagina que se cerra não de gozo mas de raiva, no abandono do corpo que grita insatisfeito.
O amor de Boon Sri fora uma revelação que a levara ao êxtase, a descoberta de um misterioso jardim de delícias até então vedado, embora pressentido em cada gota do seu sangue e desejado por cada partícula do seu corpo. Fogo ateado em incêndio pelo desafio do interdito, o perigo da denúncia, o risco da mutilação e morte infamantes. Almas e corpos executando em perfeita sintonia a dança do amor, pura harmonia de sons nos cascavéis de prata, maviosos de ternura, vibrantes de paixão, leve tinido em tom de suspiro na modorra do repouso, para logo se reacender num crescendo de fanfarra gloriosa até à explosão de todos os sentidos.
No ano da Serpente do ciclo anterior, mil quinhentos e trinta e três, Chai Raja soubera aproveitar-se dos distúrbios das províncias do norte causados pela morte de Boromma Raja e a fraca regência da rainha, para chefiar uma rebelião e apoderar-se do trono pela força, matando o sobrinho.