Doze anos volvidos, cumpria-se o ciclo dos astros e o ominoso signo da Serpente chegara de novo com tumultos nas terras do norte, forçando o rei a partir mais uma vez para Chiang Mai com todos os homens capazes de pegar numa arma, além da sua temível guarda pessoal de portugueses, deixando o reino entregue às mulheres. Nas veias de Sri Suda Chan corria o sangue espesso de reis ambiciosos e, mau grado a sua condição, ansiava pela restauração do poder dos Uthong de que era herdeira. Uma aspiração exacerbada pelo receio de vir a ser preterida por outra favorita, mal Chai Raja se fartasse dela, um destino que se adivinhava próximo. A ausência do rei dera-lhe grande liberdade de acção, fornecendo-lhe ao mesmo tempo pretexto e ocasião para pôr em prática os seus planos.
Fizera transferir Boon Sri para as capelas interiores do palácio, com o título de Khun Jinarat, o venerável cargo de curador das imagens douradas de Buda, em substituição do anterior oficiante que aparecera morto no rio, assassinado por salteadores. Por fim, pudera entregar-se sem peias ao amor que a enfeitiçara como um filtro mágico e a fazia escrava do amante, a ponto de estar disposta a todas as loucuras e crimes para não o perder. Fora então que o destino ditara mais uma vez o curso da sua vida.
Estremece, arrancada às suas recordações por algo exterior e olha em volta, sentindo-se perdida. À entrada do canal Sa Bua, o nevoeiro envolvera tudo numa espécie de fumo espesso que mal permitia ver a um palmo de distância e penetrara até no coberto; na barca, que apenas desliza, reina um silêncio quase absoluto para a timoneira e as remadoras não se distraírem, evitando os obstáculos e o desastre.
Foi o inesperado silêncio que a despertou. Não sabe a razão deste reviver da sua vida passada, senão o peso no peito que parece esmagá-la e de que gostaria de se livrar gritando. Sente-se vulnerável fora do palácio, desprotegida, porém, fugir seria mostrar fraqueza ante o inimigo. Conta com a protecção do cunhado Nai Chan, o Segundo Rei, que virá do lado dos currais, pelo canal, ao encontro da barca real e já não deve tardar a aparecer. O irmão de Boon tinha sido uma peça fundamental para o êxito da sua tomada do poder.
Nesse ano de quarenta e cinco, quando Chai Raja, ausente quatro meses em campanha, regressara ferido a Ayuthya, ela descobrira com desespero a sua prenhez, fruto do adultério. Quando fores ao bosque não te esqueças da catana, dizia o povo. Desafiara tabus, correra riscos e agora, face ao perigo, só lhe restava atacar para se defender, vencer ou morrer. Era tempo de agir, não havia que hesitar.
Boon Sri empalidecera de terror ao saber da sua prenhez, mas ela tranquilizara-o, assegurando-lhe que apenas a sua fiel Prik conhecia o segredo, porque o velho médico que a examinara, ao sair do palácio, por a noite ser muito escura, caíra no canal e afogara-se. Contudo, Chai Raja teria de morrer, antes que a deformação do seu corpo lhe revelasse a gravidez. Se os céus lhes fossem propícios, talvez o ferimento de guerra fosse fatal e o rei morresse em glória, deixando-os livres para lidar com um rei-menino, o seu filho Yot Fa, que lhe obedecia em tudo. De contrário, teriam de forçar a mão ao destino e ela se encarregaria de o fazer.
Chai Raja vinha ainda combalido, mas livre de perigo, graças aos cuidados do médico e astrólogo português que o acompanhava sempre e em quem confiava mais do que nos físicos da sua própria terra. Tivera forças para desfilar no cortejo do Elefante Branco, que celebrara o seu triunfo, porém, quando recolhera ao palácio, sentira-se cansado demais para comer e pedira uma taça de leite. Fora o momento esperado para agir e Prik aproveitara-se da agitação e confusão que a festa trouxera ao palácio, para enganar o provador da comida, trocando a sua taça por outra embebida na peçonha que recebera das mãos da sua bisavó.
O rei tardara cinco dias a morrer, em grande agonia, já no início do ano do Cavalo, de mil quinhentos e quarenta e seis, tempo que empregara a pôr em ordem os negócios do reino para a coroação do filho, concedendo-lhe também o que ela sempre desejara: o título de rainha e regente, até Yot Fa ter idade para assumir o governo do reino. O tremor de terra, que abalara o palácio durante a cerimónia e quase matara o novo rei, em vez de a assustar, fortalecera-lhe a esperança e a ambição, tomando-o como uma premonição do fim da dinastia Suphannabumi. Apenas lhe ensombrara a alegria do triunfo ver a guarda do filho ser entregue, por decreto real, ao seu inimigo Phra Thien, o Príncipe Coroado, ou Segundo Rei.
Uma ameaça de que ela se livrara, mal o rei morrera. As criadas que ela mandara prender sob a acusação de terem envenenado o rei, confessaram sob tortura que o mandante do seu crime fora Phra Thien que conspirava para se apoderar do trono. Equivalia a uma condenação à morte do rival, contudo não fora assaz rápida no seu ataque e o espertalhão refugiara-se no templo, onde ela não lhe podia tocar. E também não era o momento azado de destruir Suriyothai, porque poria em pé de guerra os clãs Sukhothai.
Primeiro tinha de fortalecer a sua posição e, para isso, precisava de um corpo de guarda fiel, que exigira ao conselho dos ministros – um bando de fantoches que ela manobrava a seu bel-prazer –, com a desculpa da protecção de Yot Fa. Encarregara Boon Sri de criar um pequeno exército de cinco mil guerreiros fiéis para os ajudarem a tomar o trono de Ayuthya e a restaurar a dinastia Uthong. Com esta força a protegê-la, destruíra todos os seus adversários, cortando a cabeça aos chefes das principais famílias e destituindo outros dos seus cargos, confiscando-lhes as terras e os bens, que oferecia aos seus partidários. Deste modo, eliminara toda a oposição ao seu casamento com o amante, após o nascimento da filha ou quando o fizera regente do filho, em seu lugar, com o alto título de Khun.
Governaram, durante dois anos, sem grandes sobressaltos, até Yot Fa chegar à idade de treze anos e começar a fugir à sua autoridade, questionando-a, representando uma ameaça maior que tivera de ser removida. Fora a decisão mais terrível que tomara em toda a sua vida, todavia, a sobrevivência da dinastia Uthong obrigava a todos os sacrifícios. Desembaraçara-se de Chai Raja sem pena nem remorso, o regicídio fora, em todos os tempos e em todas as dinastias, o meio mais célere e comum para a tomada do poder, ele também o fizera ao sobrinho Ratsada. Yot Fa, porém, era seu filho e ela amava-o. Pedira à bisavó uma peçonha que o fizesse partir sem dor, como de uma febre própria das crianças e chorara-o com paixão, fazia agora quarenta e cinco dias, pranteava-o ainda em segredo no seu coração.
Os gritos de aviso e o som dos remos levantados em simultâneo libertam-na de novo do seu mundo de sombras e abismos, trazendo-a à superfície da luz que, nesse dia, parece quase tão baça e cinzenta como a sua alma. A barca real desliza pelo canal com um murmúrio roçagante de seda, apenas cortado de quando em quando pelos sons da floresta – grito de ave, guincho de macaco, barrito de elefante –, quase assustadores no meio do denso nevoeiro que os envolve como véus esfiapados de algodão. O marido sai do coberto e ela segue-o, levando o filho pela mão. Como uma cortina que se arreda, a névoa permite ver, mais abaixo no rio, as sombras de três laulees com homens armados.
– Quem vem lá? – brada de novo a capitã da sua guarda de corpo. – Quem sois?
– Quem ousa impedir-me a passagem? – pergunta Khun Worawongsa, com altivez.
– Eu, Khun Phiren! – replica o guerreiro, de pé no barco, de espada desembainhada. – Não esperes socorro do teu irmão, Nai Chan morreu. E tu vais morrer também!
– Traição! – grita o usurpador. – Sinalai à guarda!
Acercam-se da barca real, prontos para a abordagem, ao mesmo tempo que os barcos da comitiva e da guarda do rei a alcançam.
– Remai para a margem – ordena Sri Suda Chan às remadoras, com voz segura. – Protegei o rei!