Os barcos de socorro avançam, metendo-se entre a barca real e a frota dos conspiradores, disparando sobre eles os arcos e os mosquetes. As remadoras da rainha, exímias na sua arte, dão asas à embarcação que depressa atinge a margem. Ao desembarcar, apesar do nevoeiro, vêem avançar no seu encalço, do lado oposto do rio, duas novas embarcações.
– A minha aldeia fica perto – diz Prik. – Lá achareis abrigo e podereis pedir reforços.
– Salvai-vos – diz a capitã – que nós lhes impediremos o desembarque e a perseguição, enquanto houver vida nos nossos corpos.
Guiados pela fiel Prik e protegidos por um pequeno corpo de guardas, Boon Sri, Sri Suda Chan com o filho agarrado à sua mão e a ama com a princesinha ao colo embrenham-se na selva. Emboscados, os mercenários portugueses da companhia de Khun Phiren esperam por aqueles que logrem escapar aos barcos, com ordens de não perdoarem a vida a ninguém – homem, mulher ou criança –, excepto ao príncipe Sri Sin que, por ser do sangue real de Chai Raja, será entregue aos cuidados de Khun Thien.
Uma única descarga de mosquetes basta para pôr fim à vida dos fugitivos, selando para sempre a extinção da dinastia Uthong e Sri Suda Chan morre, amaldiçoando Thien e Suriyothay.
Com a morte da pérfida consorte, a sua narradora terminaria com chave de ouro a sua história e o capítulo, seguindo no rasto de Fernão Mendes Pinto para outras terras ou outros mares.
Todavia hesita e não se decide a sair do Sião, abandonando o seu leitor a contas com os fios ainda por atar desta meada de intrigas e a perguntar-se, sentindo-se logrado: Que sucedeu a Phiren, Thien e Suriyothay? E Tabinshwethi, o Tigre Adormecido, terá desistido da sua cobiçada Ayuthya?.
Falta à narradora coragem para o deixar sozinho em tal aperto, preferindo pecar por excesso do que por penúria. Retomará, então, no próximo capítulo as pontas soltas de tantas vidas cruzadas, segundo o conselho do primeiro narrador destas histórias, que avisava os seus leitores: E deixando também à parte tudo o que mais sucedeu neste reino Siame, direi somente o em que pararam estas cousas todas, que aos curiosos cuido que não deixará de dar gosto.
200 Poema épico siamês, tradução livre do inglês pela autora.
X
Confundir lâminas com lótus
(Sião)
Vede fazer amor a três
o que superiormente reinou:
braços apresando a carne, o corpo tenso
para estreitar e admirar,
desejar, gozar, entreabrir os lábios
para saborear mil gostos
de celestial hidromel
– como um só par, assim
em ardente e bravio abraço.
(Excerto de um poema épico thai, anónimo)
Os corpos do brâmane Boon Sri, da concubina Sri Suda Chan e da filha da sua traição foram decapitados, empalados e abandonados na floresta para repasto das feras. As três cabeças foram levadas para a corte, espetadas em estacas e exibidas ao povo como troféus. Os olhos de Sri Suda Chan, que outrora enfeitiçavam os homens, olharam sem ver o espectáculo que em vida tanto temera – o cortejo triunfal da coroação do príncipe Thien e de Suriyothay, a sua odiada rival.
Como prémio da sua acção na conjura, Khun Phiren foi nomeado Segundo Rei e recebeu por esposa a princesa Sawatdirat, que por estranha coincidência era a viva imagem da rainha sua mãe, aos quinze anos de idade, e, tal como ela, se rendera à coragem e nobreza viril do comandante.
Todavia, fosse por razões históricas, graças a mero acaso ou por força da maldição da concubina, Suriyothay não viveu muito tempo para gozar o fruto das suas próprias intrigas e jogos de poder. Nesse mesmo ano do Galo, de mil quinhentos e quarenta e nove, Tabinshwethi, sempre de olho cobiçoso na nação vizinha, aproveitou-se das suas lutas para a invadir, cercando Ayuthya com trezentos mil homens, três mil cavaleiros estrangeiros e setecentos elefantes.
Na batalha decisiva pela salvação da cidade e do reino, a vitória inclinava-se para o rei de Bramaa, graças a uma força de mais de mil portugueses, comandados por Diogo Soares de Albergaria, o Galego, e a um monstruoso basilisco, a maior peça de artilharia jamais vista naqueles reinos. Suriyothay e a sua filha mais velha, sentindo a derrota iminente, armaram-se com o elmo, a couraça e a alabarda dos príncipes e saíram a campo, com todas as mulheres da sua casa que sabiam lutar, em socorro dos seus homens. Montadas em elefantes de guerra, avançaram para o local onde a batalha era mais acesa e o rei Thien, coberto de sangue e quase sem forças, lutava contra o senhor de Prome, aliado de Tabinshwethi.
O elefante de Thien tombou mortalmente ferido, arrastando-o na queda e Suriyothay viu como o adversário carregava sobre ele para lhe dar o golpe de misericórdia. Sem hesitar, fez o seu elefante avançar e atacou o general inimigo, que julgou ter diante de si um Uparat, o Príncipe Coroado ou Segundo Rei, que devia ser muito jovem porque lutava com denodo e coragem, mas sem experiência de combate. O senhor de Prome ripostou com ímpeto, ansioso por reclamar a sua morte e não lhe foi difícil apanhá-lo com um golpe traiçoeiro de alabarda que o cortou do pescoço até ao peito.
Quase ao mesmo tempo, uma lança atravessou o coração da princesa, que acorrera em socorro da mãe e ambas tombaram em simultâneo dos dorsos dos seus elefantes. Por fim, liberto do animal morto, Thien lançou-se com um grito de paixão sobre o agressor e cravou-lhe a lança na garganta.
A morte de Suriyothay e da princesa inspirou tamanho desejo de vingança nos siames que se lançaram com fúria cega sobre os bramaas e pegus, rechaçando-nos com pesadíssimas baixas. Tabinshwethi, temendo os reforços de Khun Phiren, levantou o cerco, trocando uma retirada segura e dois elefantes sagrados, pelo filho mais velho e o genro de Thien que tomara como reféns.
Não demorou muito a satisfação do tirano bramaa pela posse dos elefantes brancos, porque ninguém nas suas hostes sabia dominar e conduzir as divinas alimárias, de modo que a confusão e os danos causados ao exército em retirada foram mais nefastos do que os sofridos às mãos dos seus adversários. Tabinshwethi não teve outro remédio senão devolver os elefantes e voltar para a sua terra de mãos a abanar.
A Divina Providência ou a persecutória Fortuna pusera mais uma vez Fernão Mendes Pinto no centro da guerra, no Sião. Ali fora de passagem para comprar mercadorias e afinal mercara sarilhos, sendo de novo arrolado nas forças portuguesas de Domingos de Seixas, durante os quatro meses que durou o cerco. O valoroso capitão do Ban Portuguet, o campo português de Ayuthya, nunca recebeu o reconhecimento d’el-rei de Portugal pelos muitos serviços prestados, vindo a morrer como um indigente no hospital dos Pobres em Lisboa.
Por ambos se soube dos sucessos destes conturbados anos e como o destino de Tabinshwethi continuou ligado aos feringhis portugueses, para bem e para mal de seus pecados.
Depois das campanhas do Sião, tendo anexado e unificado os reinos da Birmânia, aos trinta e cinco anos de idade, o tirano estabeleceu com grande fausto a sua corte em Pegu. Mantinha a hoste de guerreiros portugueses, pagos com muito ouro, cujo comandante Diogo Soares, o Galego, era um dos mais poderosos senhores do reino.
Um sobrinho de Soares, tão aventureiro e desprovido de escrúpulos como o tio, homiziou-se e veio pedir-lhe protecção. Fora enviado de Malaca por capitão de uma frota de sete navios, numa expedição punitiva contra o sultão de Achem, porém, tendo sofrido pesada derrota, Álvaro Soares fugira com trezentos homens nos juncos que escaparam aos inimigos e, para não prestar contas do desaire ao capitão da fortaleza, refugiara-se em Martavão, cujo senhor em vez de o acolher no seu exército o mandara sob prisão para a corte de Pegu, onde o tio lhe conseguiu sem custo a libertação e o favor de Tabinshwethi.
Mancebo de muito bom corpo, belo rosto e agradáveis modos, para mais bom cavaleiro e melhor caçador, não tardou a conquistar as boas graças do tirano, adestrando-o na caça com as suas novas armas de fogo, tornando-se no seu favorito e companheiro em todos os prazeres e desenfadamentos. Para mais o favorecer, Tabinshwethi casou-o com uma formosa açafata da casa real e, em retorno, Álvaro ensinava a esposa a cozinhar comidas portuguesas para Sua Alteza degustar e fazia-lhe vinho de uvas e aguardente de frutos com mel, que ele desconhecia e o deliciavam.