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O português era presença indispensável junto do trono, para lhe servir os vinhos, que ele bebia sem cessar. Tabinshwethi deixou de atender aos negócios do reino, para viver num estado de permanente embriaguez e grande devassidão, interessado somente em satisfazer a sua luxúria, exacerbada pelo vinho, a que não escapavam as mulheres e filhas dos seus vassalos. Eram famosas as suas orgias com gente licenciosa como Diogo Soares, que não hesitara em raptar uma formosa noiva gentia no dia do seu casamento, matando-lhe o esposo e os parentes que a defendiam, para cevar os seus instintos; a moça enforcara-se para não ser desonrada pelo algoz e a sua história causara grande indignação no reino.

Atento à onda de descontentamento do povo e dos nobres, Bayin-naung decidiu intervir.

– Abusas das mulheres e filhas dos teus vassalos, a tua conduta é imprópria de um rei! – censurou-o num tom severo, embora respeitoso, para não incorrer na sua ira. – Dás ouvidos a intriguistas e aduladores, premiando os falsos e enviando para a morte homens inocentes que te são leais.

Tabinshwethi retorquiu-lhe, com um riso de ébrio:

– Amo a bebida, meu irmão, estou cansado de governar e de combater. Deixa-me fruir os meus prazeres e não me importunes mais com petições. A partir de agora cuidarás por mim dos negócios do reino.

Deixou de aparecer em público, recusando-se até a atender aos alardos do seu exército, tarefa que outrora o enchia de alegria e orgulho. Bayin-naung, que ele designara por herdeiro, governava em seu lugar e, se ele mandava executar gente inocente, ouvia os queixosos e não cumpria as suas ordens. Os principais senhores bramaas, shans e talaings vinham sondá-lo, rogando-lhe que tomasse o trono e exercesse de pleno direito aquilo que fazia por generosidade e justiça, ao contrário d’el-rei que tinha perdido o tino sob o poder do seu valido português.

Bayin-naung, que era leal ao cunhado e o amava como a um irmão mais novo, temendo que os sawbwas conspirassem contra ele e o fizessem assassinar, escolheu para sua protecção uma guarda dos seus melhores oficiais, ao mesmo tempo que procurava apaziguar os ministros:

– Irmãos, devemos lealdade e gratidão a el-rei. Não falemos mais de semelhante assunto, nem o digais a outrem que é traição! Compete-nos aconselhar Sua Majestade e servi-lo bem. Tabinshwethi pode ter cometido alguma falta numa vida anterior, por isso, a sua mente está enferma e ele delira – olhou-os com expressão tranquila e concluiu sorrindo –, mas o reino não há-de perecer, se nós nos mantivermos vigilantes e o defendermos. Voltai sossegados para os vossos feudos.

Alarmado com os primeiros fogos de revolta, o regente tomou providências com rapidez e em segredo, para que o cunhado não pudesse impedi-lo, pagando ao favorito português uma grossa quantia em ouro, acompanhada de uma velada ameaça se não fosse obedecido, e expulsou-o do reino. Contudo, a embriaguez de Tabinshwethi e o seu desatino agravaram-se a tal ponto que o cunhado determinou afastá-lo da corte, para melhor o proteger, aposentando-o com grande estado num palácio, com um belo bosque onde poderia caçar, nos domínios do sawbwa de Sittaung, a cuja protecção o entregou.

Mau grado os seus esforços, não conseguiu estancar os ódios e as conspirações. Os talaings revoltaram-se, por serem forçados a servir durante anos nas intermináveis guerras de Tabinshwethi, conjurando para pôr no trono um nobre monge que foram buscar ao seu mosteiro para chefiar o levantamento. Bayin-naung acudiu a dominar a revolta, sendo a sua ausência aproveitada pelo sawbwa de Sittaung (que pertencia ao mesmo clã dos revoltosos e, farto da tirania e dos desmandos do rei bêbado, se deixara aliciar pelos conspiradores) para perpetrar o regicídio.

Conhecendo o quanto Tabinshwethi sempre desejara possuir um elefante branco, chegando mesmo a provocar uma guerra para conquistar esse símbolo do poder real, anunciou-lhe que uma dessas maravilhosas alimárias fora vista no mais cerrado do bosque. Tal como esperava, o rei preparou-se para a caçada com uma emoção e alvoroço como há muito não sentia e partiu para o bosque, sem se aperceber de que os seus guardas fiéis não iam com ele, afastados pelo sawbwa. Escondidos no bosque esperavam-no os conspiradores talaings que lhe cortaram a cabeça, depois de matarem os criados bramaas, leais a Bayinnaung, que o defendiam.

Sem a protecção de Tabinshwethi, também o poderoso Diogo Soares, o Galego, foi justiçado pela populaça que o apedrejou e desfez em pedaços, acorrendo ao apelo de justiça de um pai a quem ele raptara a filha no dia do casamento, causando a sua morte.

Acompanhámos Fernão Mendes Pinto durante a primeira década da sua peregrinação de vinte anos pelo Oriente, aquela em que mais viagens fez, mais países visitou, mais desastres sofreu, mais fortunas ganhou e perdeu e mais personagens encarnou – espião, embaixador, médico, corsário, mercador, contrabandista e guerreiro mercenário –, que ele narra nos primeiros duzentos capítulos da sua obra.

Apartamo-nos dele aqui, porque esta nossa narrativa já vai longa – sendo o tempo tão curto e a vida tão breve – tanto mais que nos vinte e seis capítulos restantes Fernão vai cantar, não as suas façanhas mas as do padre Francisco Xavier de quem se fez amigo.

Após a morte do fundador da Companhia de Jesus, Fernão Mendes Pinto sentiu uma profunda exaltação religiosa e decidiu abandonar as ambições e prazeres mundanos para se consagrar a Deus. Entrou para a ordem como noviço, despojando-se de todos os seus bens, libertando os seus escravos e doando aos jesuítas a avultada fortuna que finalmente conquistara.

Passado um ano de noviciado, todavia, na sua quarta viagem ao Japão como embaixador ao serviço da Coroa e do padre Mestre Belchior Nunes Barreto, curou-se da crise de misticismo e saiu da Companhia de Jesus, regressando pouco depois ao reino, no ano de mil quinhentos e cinquenta e oito, para casar, criar família e escrever a sua Peregrinação que, no entanto, não foi publicada em sua vida.

Agradecimentos

Em primeiro lugar, gostaria de expressar a minha profunda gratidão às centenas de autores portugueses e estrangeiros que, embora desaparecidos há séculos, foram os meus Mestres, a quem rendo homenagem com os excertos das suas obras inseridos no início de cada capítulo, para que os leitores os possam recordar ou conhecer, pois eles são os gigantes que nos erguem generosamente nos braços, permitindo-nos ver mais alto e mais longe.

Agradeço também aos estudiosos contemporâneos, de várias áreas, cujas obras li, para alargar a perspectiva dada pelos autores coevos de Fernão Mendes Pinto, esclarecer dúvidas ou mesmo corrigir os erros, nomeadamente, aos Professores Rui Manuel Loureiro, por me ter disponibilizado o texto de Jorge Álvares na pesquisa sobre o Japão e Sérgio Capparelli (Brasil), pelos poemas chineses traduzidos que recolhi do seu blogue. Sem esquecer Eduardo Ribeiro (Macau) e Alan Pereira, pelo envio de artigos e sugestões de leituras para alguns dos temas do romance, assim como Eugénio Conceição (Brasil) e Jorge Manuel Gonçalves que leram os rascunhos deste livro e contribuíram com as suas sugestões.

Um enorme agradecimento à competentíssima equipa da Casa das Letras, pelo excelente trabalho de dar às minhas palavras um corpo de textura agradável ao tacto e roupagem atraente para os olhos, com particular referência a Maria João Lourenço pelo seu apoio e amizade. E ao Director Editorial da Leya, João Amaral, por ter acreditado neste romance, quando ainda se achava em construção. A editora Marta Ramires terá para sempre a minha imensa gratidão, pelo muito tempo e trabalho que dedicou a este livro, pelo empenhamento, disponibilidade e paciência com que acolheu as minhas intermináveis correcções e constantes alterações, ajudando-me a melhorá-lo.