12 Cabo do mar Roxo.
13 Barcos do mar Roxo. As gelvas eram como pequenas caravelas movidas a remos e velas; as tarradas eram barcos em forma de barril para transporte de cavalos e cavaleiros.
14 Peregrinação, capítulo IV.
15 Gelbas ou jelbas eram embarcações pequenas, subtis e ligeiras, sem pregadura, com as tábuas atadas por cairo, com mastro bípede e duas velas, governadas a dois remos, não podendo navegar de noite.
16 Terradas são embarcações largas e sem quilha, de proa baixa e popa muito alta, de um só mastro com vela latina, triangular, também movida a remos, muito rápidas. O leme é governado por cordas que vêm sair no centro da terrada.
17 Mastro.
V
Uma boca que reza e uma mão que mata
(árabe)
De alguns preceitos da jihad:
Se for feita presa, que [o capitão] a mande juntar e dar o despojo do morto ao matador, despojo que consiste nas suas roupas, sapatos, cinturão e fato; quanto aos objectos encontrados com ele, braceletes, armamento de guerra, arreios, selas e rédeas, mandá-las dividir em cinco quinhões, e um deles em cinco outros; o primeiro para beneficiação dos muçulmanos, por exemplo, a defesa da fronteira, a construção de fortalezas, de pontes, de mesquitas, e honorários de juízes e sacerdotes; o segundo para os próximos parentes do profeta, os Háxeme e os Almotálebe18; o terceiro para os órfãos; o quarto para os desprotegidos da sorte, incluindo os faquires; o quinto para os viajantes; e os quatro quintos restantes para os apresadores que realmente tomaram parte na luta.
(O Mimo do Campeão da Fé ou a História dos Portugueses no
Malabar, de Zinadim Benalí Benhamede19)
Ferhâd Paxá, o capitão da cidade de Al Mukhâ ou Mocaa, como ouviam pronunciar os portugueses, tendo sido avisado da vitória e chegada do seu genro Soleimão Dragut, preparara-lhe um recebimento digno de um herói, com a artilharia do porto a disparar estrondosas salvas. Dezenas de galeras engalanadas saem ao encontro das galeotas, saudando com grandes gritas e fanfarra de muitos instrumentos os macabros estandartes pendurados nas pontas dos mastros que são os oito pedaços ensanguentados de dois cativos portugueses que não tinham sobrevivido aos ferimentos do combate e os seus algozes haviam esquartejado para os exibir como troféus.
Dragut responde com disparos da sua artilharia e vai desembarcar na praia, onde já o espera o sogro com muito povo e uma força de algumas centenas de soldados, perfilados em boa ordem. Mal põe o pé em terra, soam os tiros das bombardas, tanto das defesas da cidade, como dos navios que o escoltaram, com tal estrondo que a terra estremece e os pássaros fogem espavoridos. Incontáveis músicos tocam oboés, címbalos, flautas e tambores com um estrugido igualmente ensurdecedor que, todavia, não logra abafar as vaias com que Fernão e os oito companheiros são recebidos pela multidão, quando os soldados os lançam na praia presos uns aos outros por uma corrente.
Ferhâd sauda o genro, levando as mãos ao coração e em seguida tomando as dele entre as suas e o Moulana ou caciz que eles têm por santo, num carro engalanado como um andor de procissão, faz uma arenga muito apaixonada ao povo para dar graças ao profeta Muhammad por aquela vitória sobre os cristãos, cuja punição dos sobreviventes fará ganhar indulgência plenária a todos os fiéis que nela participem.
Trazem a Dragut um cavalo berbere ricamente ajaezado, com um frontal de prata e pedraria, rédeas de seda e manta bordada e o longo cortejo percorre em triunfo a cidade, com os cativos acorrentados a servirem de divertimento à populaça, que os esbofeteia, cospe e insulta, chamando-lhes perros infiéis, ministros de Satã, franges malditos, a quem as mulheres lançam do alto dos terraços e janelas muitos bacios de urina e de fezes por vitupério e para ganharem a tal indulgência que lhes prometera o caciz.
O suplício só termina ao sol-posto e a imunda prisão subterrânea para onde o atiram com os companheiros parece a Fernão um abrigo abençoado, embora depois de longos dias de encarceramento, fome e maus tratos se tenha transformado num túmulo onde os seus algozes parecem querer sepultá-los vivos. Dois portugueses e o bispo abexim, que padeciam de graves ferimentos do combate, à míngua de tratamento e agravados pelas sevícias da populaça, morreram nessa primeira noite. Embora chorasse os companheiros pela sua valentia e o bispo pela sua bondade e zelo cristão que muito os confortara no infortúnio, quase lhes invejara a sorte, apesar de ver como os corpos foram levados presos pelos pés e a arrastar pelo chão, através das ruas da cidade, para serem apedrejados pelo povo e lançados ao mar. Se usavam de tamanha crueza para com os mortos, o aventureiro tremia só de pensar no que iriam fazer aos vivos.
Temendo que os cativos morressem todos e se perdesse assim o maior lucro das presas, cujo espólio fora de modesta valia, os capitães das galeotas exigiram que os cristãos tomados no assalto fossem a leilão em hasta pública, sem tardança, dando instruções ao carcereiro sobre o preço a partir do qual os leiloeiros deviam licitar cada um dos seis escravos. Nessa mesma noite curaram-lhes as chagas com uma mistura de sal e vinagre, o que causou tamanho sofrimento aos que tinham as feridas mais graves que todos cuidaram que eles não veriam a luz do novo dia. Mas, Deus não se compadeceu dos pecadores, conservando-lhes a vida para os fazer sofrer, no dia seguinte, ainda maiores provações às mãos dos mouros.
O lugar do mercado de escravos é junto aos bazares da cidade, na praça principal numa espécie de pátio quadrado, circundado por quatro galerias abertas, onde se reúnem os compradores. Para lá os conduziram o carcereiro e os traficantes, como animais, a golpes de cacete e enchendo-os de injúrias. Aturdido pela fome, as pancadas e a gritaria, Fernão sente-se a viver um pesadelo, no qual o mundo se virara do avesso e ele, em vez de se achar a comprar cativos mouros ou negros em Lisboa, por artes do diabo ou de malévolo feiticeiro, fora transformado de predador em presa, de senhor em servo, de homem livre em escravo com menos direitos do que um animal de carga, prestes a ser vendido num mercado da Arábia.
Sofre com resignação o puxão da corrente no seu pescoço, quando os pregoeiros os arrastam numa última volta por todo o mercado, chamando os compradores, em altos brados, apresentando-lhes a mercadoria como peças robustas e da melhor condição, a fim de fazerem subir o preço.
– Estes cristãos são fortes e avezados ao trabalho – apregoa um –, bons para laborarem as terras, cultivarem os jardins, guardarem gado nos campos ou nas quintas.
– Os franges foram apresados no mar – anuncia outro –, sabem trabalhar nos barcos, na pesca ou em qualquer ofício de proveito para o amo. Ou podeis vendê-los na Índia ou no Cairo, com muito lucro.
Os compradores vão-se chegando para os observarem de perto.
– Os escravos franges são um perigo. Podem cortar-nos a garganta ao primeiro descuido.
– Estes são mui enfezados e enfermos! Não servem para trabalhar nos campos e podem pegar-me alguma maleita.
– Inda não tiveram tempo de se recompor dos ferimentos de quando foram cativados – apressa-se a justificar o leiloeiro, alteando a voz para se sobrepor aos risos que os comentários provocam. – Com algum repouso e um pouco de comida não tardarão a ganhar forças. Vede como têm bons corpos e sem nenhum mal vergonhoso que os impeça de trabalhar.
Manda-os despir e Fernão apressa-se a obedecer quando vê os servos do mercado arrancarem as roupas à força de pancada a dois companheiros que se recusavam a cumprir a ordem. Como um animal amestrado, faz o que lhe é ordenado, andando, saltando, cabriolando e mostrando os dentes para os clientes verem que não padece de qualquer mal capaz de prejudicar o trabalho exigido pelo amo.