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Apesar da sua miserável nudez e humilhação, Fernão observa os pormenores da cena, em que se manifestavam as diferenças dos povos que tanta curiosidade lhe despertavam quando as apreciava em liberdade e segurança. Mesmo reduzido à ínfima condição humana, quase se esquece de si, pasmado de ver como os compradores são dados às artes da quiromancia, mirando demoradamente as linhas das mãos dos cativos, comentando entre si o tempo de vida de tal escravo, os sinais de doença deste outro, o perigo ou a má sorte que lhes haveria de trazer aquele de má catadura, ou mesmo se haveria de fugir ao cativeiro.

Sente o coração apertado de angústia e a custo contém as lágrimas para não mostrar fraqueza ante os algozes, acirrando-lhes o desprezo e o desejo de lhe infligirem maiores sevícias. Terminara cedo e mal a sua aventura do Oriente, vendido como uma rês e como ela condenado a puxar um arado, zurzido pelo cajado de um infiel até à sua morte, que esperaria com ansiedade por só nela achar a libertação do cativeiro.

A menos que renegasse a sua fé e se convertesse à Lei dos muçulmanos, como lhe iria ser requerido pelos seus donos, disso não duvidava, por serem sobejamente conhecidas as histórias dos renegados, que por medo ou interesse aceitavam a conversão, a fim de terem uma vida melhor ou, se a sorte lhes sorrisse, ganharem a alforria ou mesmo ocuparem cargos de importância entre os mouros.

Só os mártires e santos resistiam aos tormentos que estes inimigos usavam para forçarem os cristãos a abjurarem da sua fé. O mais comum dos tratos, ministrado nas prisões, consistia em os carrascos obrigarem o cativo a curvar-se, atando-lhe os pés aos ombros e suspendendo-o de um pau, preso ao tecto, para lhe darem chibatadas nas plantas dos pés ou lhas pingarem com cera ardente de uma vela acesa, até a sua vítima ceder a tudo o que os seus algozes demandavam ou morrer.

Ele não tem vocação para santo nem para mártir, não passa de um mísero mortal, um pobre coitado sem fortuna que viera para a Índia a fim de enriquecer ou pelo menos melhorar de vida. Por muito que ame e tema a Deus, sabe que renunciará sem hesitar à sua fé, para se salvar da tortura; embora pedindo-Lhe perdão e continuando a adorá-Lo no segredo do seu coração, não deixará de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para ganhar tempo e salvar a vida, enquanto espera por uma oportunidade de fuga.

Os leilões de cristãos não devem ser muito frequentes naquele lugar, porque a praça não tarda a encher-se de uma grande multidão, cuja excitação atinge o rubro com a chegada do capitão da cidade Ferhâd Paxá que, agradecendo a ovação e os gritos rolados na garganta, vai sentar-se numa bancada que os leiloeiros cobriram com panos e coxins. O pregoeiro principal, fazendo um esforço para dominar a emoção, toma Fernão por um braço e dá início ao leilão apresentando a primeira peça:

– Este cristão letrado é um frange mercador, que vos poderá ser de grande valia nos negócios e.

É interrompido pelo burburinho que faz a multidão a arredar-se para deixar passar o Moulana20 que chega com uma dúzia dos seus cacizes ou sacerdotes menores e se dirige sem delongas a Ferhâd Paxá:

– Cessai o leilão dos cristãos! Valoroso capitão, requeiro-vos que me entregueis estes cativos para eu os levar de esmola ao túmulo do profeta Muhammad, louvado seja o seu nome, aonde vou em peregrinação por mor do povo desta cidade e, para não ser caso de desonra para ti, não devo apresentar-me ante o seu santo corpo de mãos a abanar porque, sem uma generosa dádiva, o Moulana de Medina não me concederá o perdão dos pecados para estes moradores que tão necessitados estão das graças de Allah.

Ouve-se o murmúrio de protesto dos matalotes e soldados que acompanham Coja Geinal, um dos capitães janízaros que fora encarregue pelos outros da venda dos cativos. Ferhâd Paxá, de cenho franzido pela contrariedade, responde numa voz firme:

– Não tenho poder nesta presa, Moulana, para dispensar nela tão largo quanto me pedes, porque ela pertence aos que os cativaram em combate. Terás de falar com o capitão-mor Soleimão Dragut, meu genro, que decerto te outorgará de boa vontade o que pedes.

– As esmolas pedidas em nome de Allah não devem ser joeiradas por tantas mãos, Paxá, mas apenas pelas daqueles a quem se pedem – replica o caciz com arrogância. – Tu, e só tu, és capitão desta cidade e deste povo, portanto só a ti pertence conceder esta esmola tão justa ao profeta, pois só ele deu a vitória ao teu genro e não o esforço dos seus soldados, como tu dizes.

O murmúrio dos soldados transforma-se em brados de protesto e alguns punhos erguem-se no ar. Coja Geinal fez um gesto com a mão para que se calem e, erguendo a voz a fim de se fazer ouvir do Moulana e de Ferhâd, replica em tom magoado:

– Falastes em desprezo meu e destes homens, que com risco de suas vidas tomaram estes cativos. Quanto melhor vos fora, Moulana, para salvação da vossa alma, repartirdes com os pobres soldados do vosso que vos sobeja, do que com palavras hipócritas tentardes roubar-lhes o seu, como tendes por ofício fazer continuamente.

Um silêncio pesado caiu sobre a multidão, pasmada com o que o capitão ousava dizer ao poderoso Moulana, que parecia ter igualmente perdido a fala.

– Se não quereis levar as mãos vazias – continua Geinal imperturbável – para por vosso interesse peitardes os cacizes de Medina, fazei-o com o património que o vosso pai vos deixou e não com estes cativos que custaram as vidas de muitos dos nossos e muito sangue a nós que estamos vivos.

– Como ousas, vilão, insultar um homem de Deus? Maldito sejas, com toda essa corja de assassinos que te acompanha! Condeno-vos ao.

E mais não pôde dizer, porque os soldados de Geinal, turcos e mouros, desembainham as armas contra ele, porém, as gentes da cidade, que são a favor do Moulana, fazem barreira, tomando cacetes, punhais e tudo o que possa servir de arma, enfrentam os soldados. Ferhâd chega-se aos brigões, tentando aquietar os ânimos, mas ninguém o quer ouvir e um bando de exaltados rodeia-o, ameaçador, sem que os seus guarda-costas ousem impedi-los. Um golpe traiçoeiro corta-lhe um braço e só a muito custo os da sua comitiva logram retirá-lo da praça e levá-lo para casa, deixando-o entregue aos cuidados do seu físico.

Todos criam que as autoridades da cidade em breve poriam fim ao confronto e castigariam os prevaricadores; porém, a briga degenerou num combate feroz que se saldou por mais de seiscentos mortos e no saque de meia cidade. Entre os mortos acharam-se o Moulana com as suas sete mulheres, os nove filhos e toda a restante família que os soldados mataram e lançaram ao mar depois de lhes roubarem a casa que era muito rica.

Os cativos portugueses só souberam destes sucessos depois de Dragut ter pacificado a cidade, em nome do sogro que convalescia do ferimento, porque, durante o leilão, Fernão e os seus companheiros pouco perceberam da disputa entre o Moulana e Geinal, por isso, quando a briga estalou entre as duas partes, sentiram um grande júbilo na esperança de que se matassem uns aos outros. Mas, ao verem o capitão da cidade ser retirado em braços da praça gravemente ferido e os leiloeiros porem-se em fuga, seguidos pelos oficiais da justiça, deixando-os entregues à sua sorte, os cativos entreolharam-se aterrados, sem saberem o que fazer.

– Quando se cansarem de lutar entre si, vão virar-se contra nós – lembrara Fernão, passando a língua pelos lábios ressequidos – porque esta querela tem a ver connosco, já que aquele capitão turco foi o que me caçou.

– Não duvido! Vão fazer-nos em pedaços!

– E ninguém nos acudirá! – soluçara um moço grumete. – Não nos podemos esconder?

Falavam todos ao mesmo tempo, atropelando as palavras, tremendo no terror de serem apedrejados ou feitos em pedaços por uma multidão em fúria. Alheio à agitação dos companheiros Fernão tentava descobrir um buraco onde se pudessem esconder.