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– O cárcere! – bradara de súbito. – Se chegarmos à prisão estaremos em segurança!

– Mas da masmorra viemos nós! Tens assim tanta pressa de te enfiar naquele buraco imundo?

– Ele tem razão – dissera o mestre da fusta Santa Cecília. – No cárcere quedaremos a salvo. E como eles estão entretidos a matarem-se uns aos outros, talvez logremos chegar ao tronco, que não está longe daqui, sem que nos detenham. Fujamos e que Deus nos ajude.

Muito juntos e escondendo as correntes o melhor que podiam, esgueiraram-se do pátio do mercado e tomaram o caminho da prisão, seguindo pelas ruas quase sem gente, porque os moradores, atraídos pelo tumulto, se tinham concentrado na praça principal e os poucos retardatários corriam para lá desatinados, sem lançarem sequer um olhar ao grupo de pedintes ou faquires com que se cruzavam. Fernão jamais julgaria possível que um imundo cárcere mouro, de onde só desejaria fugir, pudesse afinal vir a salvar-lhe a vida e as dos cinco companheiros.

Fora curto o interregno na sua desgraça, porque mal a cidade se pacificou, os cativos voltaram ao mercado de escravos e o leilão processou-se sem novos incidentes. Fernão foi vendido a um grego renegado que, durante três meses, o fez comer o pão que o diabo amassou, com trabalho e maus tratos.

Desesperado da vida, deixou de comer, não tardando a perder as forças e as poucas carnes que lhe cobriam os ossos, de modo que o dono, temendo o prejuízo que lhe adviria com a sua morte, o entregou por doze mil-réis de tâmaras ao judeu Abraão Muça que o tratou e levou para Ormuz, onde D. Fernando de Lima, o capitão da fortaleza, o resgatou por duzentos pardaus, do seu bolso e de esmolas da gente de terra, lhe deu pousada para recuperar a saúde e as forças e o enviou de novo para a Índia.

18 Os descendentes, respectivamente, do bisavô e avô de Maomé.

19 Zinadím, que significa O Ornamento da Fé, foi um escritor islamita do século XVI, talvez natural do Malabar, que atribui toda a violência aos portugueses que condena, mas justifica e até glorifica todos os ataques e morticínios que os muçulmanos lhes faziam.

20 Maulama, caciz – ulema, imã, sacerdote principal.

LIVRO II

MAR DA ARÁBIA E MALABAR

COCHIM

Na boca deste rio [de Cochim] tem el-rei nosso senhor uma fortaleza mui formosa, derredor da qual está uma grande povoação de portugueses e cristãos naturais da terra, que se fizeram cristãos depois de assentada nossa fortaleza .

[Na] povoação de Cochim há el-rei nosso senhor corregimento de suas naus e outras se fazem de novo, assi galés e caravelas, em tanta perfeição como que se fizessem na ribeira de Lisboa. Aqui se carrega grande soma de pimenta e outras muitas especiarias e drogarias que de Malaca vêm e daqui se levam cada ano a Portugal.

El-rei de Cochim tem muito pequena terra e não era rei antes que os portugueses descobrissem a Índia, porque todos os reis que novamente reinavam em Calecut tinham por costume e lei que, entrando em Cochim, tirado el-rei fora de seu estado, meterem-se em posse; e, se lhe prazia, tornavam-lho a dar ou não.

El-rei de Cochim lhes dava cada ano certos elefantes, mas não podia fazer moeda, nem cobrir seus paços de telha sob pena de perder a terra. Agora que el-rei nosso senhor descobriu a Índia o fez rei isento e poderoso.

(Livro em que dá relação das cousas que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa, 1516)

Quem se senta ao fundo do poço para contemplar o céu, há-de achá-lo pequeno

(hindu)

Carta de el-rei de Calecut a el-rei de Cochim:

Samorim, a ti Trimumpara, rei de Cochim, te faço saber que a mim é dito que tu recolhes e favoreces os cristãos em tua terra ; e porque o [que] lhes fazes farás por não saber o nojo e destruição que deles tenho recebido, matando minha gente, queimando minhas naus, com outras coisas que calo, em que recebo grande pesar; pelo qual te rogo que olhes quanto amigos sempre fomos e como todos somos de uma terra e natureza; pela razão que para isso temos, não queiras perder a mim por homens que têm vida de ladrões roubadores, que andam para subjugar reis e terras, em quem se perderá todo bem que neles se fizer. E estimá-lo-ei muito para to pagar em boas obras, quando as de mim houveres mister.

Carta de el-rei de Cochim a el-rei de Calecu:

Trimumpara, a ti Samorim, rei de Calecut, ao que dizes que recebes nojo em eu recolher em minhas terras os cristãos e lhes dar carga para as suas naus e mantimentos por seus dinheiros, tu o não deves ter por mal, porque obrigado sou a isso. Dizes que são ladrões; não os conheço por tais, antes, neste pouco tempo que com eles tratei, os achei muito bons e verdadeiros, e de tal gente não deves haver por mal enobrecer minha terra e porto, pois sabes que todos disso vivemos. Eu folgo muito com a tua amizade, como tu sabes e é razão. Rogo-te que te não agraves de mim, porque será sem nenhuma razão, que em tua terra os tiveste e dela os deitaste, matando-os. Eles, desacorridos, se vieram a mim, e comigo assentaram paz, ficando alguns deles sob a minha guarda e amparo, e seria assaz de mau exemplo se, sem causa, os lançasse fora.

Com o corpo mais composto de carnes e de ânimo novamente esperançoso, porque tristezas não pagam dívidas e quem não se quer aventurar não deve passar o mar, Fernão Mendes Pinto achava que as provações por si sofridas, enquanto cativo de mouros, tinham sido expiação mais que suficiente para todos os pecados que até então cometera, pelo que Deus lhe haveria de dar ocasião de enriquecer na Índia. Queria tentar a sua sorte em Goa, por isso embarcara na nau Cisne de Jorge Fernandes Taborda, que lá ia vender cavalos persas e arábios de Ormuz, um rico negócio, segundo dizia o capitão, apesar do dito dos mouros que naquelas partes se fizera anexim: Se não houvera sofrimento, não houvera já mundo; e se não houvesse cavalos, não haveria guerra.

Se os ventos bonançosos e a boa navegação se mantivessem, não tardariam a chegar à vista da fortaleza de Diu, um desvio na sua derrota21 para deixar alguns soldados de reforço à fortaleza, por haver notícia de que se aprontava uma armada dos rumes22 contra os portugueses. Fora de Diu que partira, há quase um ano, para a sua primeira e desafortunada aventura no mar Roxo, que tivera tão bons começos, mas, como tudo na sua vida, acabara muito mal, lançando-o na mais negra escravatura. Apesar da beleza e riqueza de Ormuz, a Pedra do Anel da Pérsia, que o deixaram deslumbrado, jurou jamais volver aos mares da Arábia, para não correr o risco de cair de novo nas garras de mouros ou turcos.

Como pouco mais possuía além da roupa que tinha no corpo, precisava de ganhar depressa algum dinheiro para recomeçar a sua vida. Ninguém lhe emprestaria a maquia necessária à compra de mercadorias para fazer tratos e, por isso, dificilmente seria bem sucedido no Malabar, apesar dos numerosos reinos que se estendiam desde o monte Delhi ao cabo Comorim e cujos nomes já em Portugal o faziam sonhar: Cananor, Calecut, Tanor, Cranganor, Cochim, Repelim, Chembé (também chamado Reino da Pimenta), Porcá, Coulão ou Travancor. Em Goa talvez fosse mais fácil embarcar em um qualquer junco ou nau que andasse às presas em lugares longínquos como Malaca, Ceilão, Samatra ou Molucas, onde poderiam trocar ou vender o produto dos saques com muito proveito porque, sendo tomados no corso, esses bens ficavam fora da alçada da Coroa e não pagavam o quinto a el-rei de Portugal.

Por ora, nada mais podia fazer senão ouvir as conversas dos navegantes e colher informações sobre as derrotas comerciais, os lugares, as mercadorias e os mais desvairados sucessos ocorridos entre os portugueses e as gentes daquelas terras. Em todos os navios que percorriam os mares do Oriente, havia sempre veteranos de muitas campanhas, dispostos a contarem façanhas heróicas, a descreverem sítios maravilhosos por eles visitados ou a darem informações das cidades e fortalezas sob alçada d’el-rei de Portugal, indicando aquelas onde melhor se poderia fazer fortuna com menor risco e avisando contra as que eram verdadeiros cemitérios de portugueses, como Moçambique.