-mor de el-rei de Bintão, e derramador e bebedor do sangue português, como se ele intitulava nos começos das suas cartas, e publicamente pregava a todos os mouros, por causa do que, e pelas superstições da sua maldita seita, era deles muito venerado.
Do mai6 que António de Faria bez depoi6 que houve eHa vitória e da liberalidade que aqui U60U
com 06 portugue6e6 de Liampó o processo desta cruel e áspera peleja, cujo fim foi esta gloriosa vitória que tenho contado, quis escrever assim brevemente e em resumo, porque se me pusera a contar por extenso todas as particularidades dela, tanto do muito que os nossos fizeram, como do grande esforço com que os inimigos se defenderam, além de não ter eu cabedal para tanto, me fora necessário fazer um processo muito mais largo e uma história muito mais comprida que esta; porém, como minha tenção é somente tocar estas coisas como de corrida, trabalho sempre quanto posso para ser breve em muitas coisas em que porventura outros engenhos melhores que o meu se alargaram muito e fizeram muito caso delas, se as viram ou as escreveram; e por isso eu não tocando agora mais que aquelas coisas que de necessidade se hão-de escrever, me torno ao de que ia tratando.
A primeira coisa a que António de Faria atendeu, depois desta vitória, foi a cura dos feridos, que por todos seriam noventa e dois, de que os mais foram portugueses e moços nossos. Após isto, querendo saber o número dos mortos, achou dos nossos quarenta e dois, entre os quais foram oito portugueses, o que António de Faria mostrou sentir mais que tudo, e dos inimigos trezentos e oitenta, de que só cento e cinquenta foram a ferro e fogo, e todos os mais afogados. E ainda que esta vitória fosse de todos muito festejada, não deixou de haver nela assaz de lágrimas públicas e secretas pela morte dos companheiros que ainda estavam por enterrar, e os mais deles com as cabe ças feitas em quartos pelas machadinhas com que os inimigos pelejavam.
António de Faria, ainda que estivesse com três feridas, desembarcou logo em terra com toda a gente que estava
boa para o poder acompanhar, onde primeiro que tudo se tratou do enterramento dos mortos, na qual obra se gastou a maior parte do dia.
Após isto, foi logo António de Faria correr toda a ilha em roda, para ver se havia nela alguma gente, e foi dar num vale muito aprazível de muitas hortas e pomares de muita divel’sidade de frutas, no qual estava uma aldeia de quarenta ou cinquenta casas térreas que Coja Acém tinha saqueado, e dado a morte a alguns dos moradores dela que não puderam fugir. Mais abaixo do vale, cerca de um tiro de besta, ao longo de uma fresca ribeira de água doce em que havia muita quantidade de mugens, e trutas, e robalos, estava uma teracena ou casa grande que parecia ser templo daquela aldeia, a qual estava toda cheia de doentes e feridos que Coja Acém ali tinha em cura, entre os quais havia alguns mouros parentes seus, e outros também honrados que ele trazia a soldo, que eram, por todos, noventa e seis; estes, em vendo António de Faria, deram uma grande grita como que a pedir-lhe misericórdia, a qual ele então não quis usar com eles, dando por razão que se não podia dar a vida a quem tantos cristãos tinha morto, e
mandando-lhes pôr fogo por seis ou sete partes, como a casa era de madeira breada e coberta de folha de palmeira seca, ardeu de maneira que foi uma espantosa coisa de ver, e em parte piedosa, pela horribilidade dos gritos que os miseráveis davam dentro quando a labareda começou a se atear por todas as partes; alguns deles se quiseram lan
çar pelas frestas que a casa tinha por cima, porém os nossos como magoados os receberam de maneira que no ar eram espetados em muitas chuças e lanças. Acabada esta crueza, tornando-se António de Faria à praia onde estava o junco que Coja Acém tomara havia vinte e seis dias aos portugueses de Liampó, entendeu logo em o lançar ao mar, porque já neste tempo estava consertado, e depois de estar na água o entregou a seus donos, que eram Mem Taborda e António Anriquez, . E fazendo
-os pôr a mão a ambos num livro que tinha na mão, lhes disse:
- Eu, em nome destes meus irmãos e companheiros tanto vivos como mortos, a quem este vosso junco tem custado tantas vidas e tanto sangue como hoje vistes, vos faço esmoIa como cristão, de tudo, para que Deus Nosso Senhor no-Ia receba por essa no seu santo reino, e nos queira dar nesta vida perdão de nossos pecados, e na outra a sua glória, como confio que dará a estes nossos irmãos que hoje morreram como bons e fiéis cristãos, por sua santa fé católica; porém vos peço e recomendo muito e vos admoesto por este juramento que vos dou, que não tomeis mais que a vossa fazenda somente, digo, toda a que trazíeis de Liampó, tanto vossa como de partes neste vosso junco, porque nem eu vos dou mais, nem é razão que vós a tomeis, porque faremos ambos nisso o que não devemos, eu em vo-la dar e vós em a tomardes.
Mem Taborda e António Anriquez, que quiçá não esperavam aquilo dele, se lhe lançaram aos pés com os olhos cheios de água, e querendo com palavras dar-lhe as gra
ças pela mercê que lhes fazia, o ímpeto das lágrimas lho impediu, de maneira que se tornou ali a renovar um lastimoso e triste pranto pelos mortos que ali estavam já enterrados, e com a terra que tinham em cima de si, ainda banhada pelo seu fresco sangue. Os dois começaram logo a entender em cobrarem sua fazenda, e foram por toda a ilha com cerca de cinquenta ou sessenta moços que os senhores deles lhes emprestaram, a recolher a seda molhada que ainda estava a enxugar, de que todas as árvores estavam cheias, fora mais de duas casas em que estava a enxuta, e a mais bem acondicionada, que como eles tinham dito eram cem mil taéis de emprego, no que tinham parte mais de cem homens, tanto dos que ficavam em Liampó, como de outros que estavam em Malaca, a quem se ela lá mandava. E a fazenda que estes dois homens ainda recolheram valeria de cem mil cruzados para cima, porque a mais, que podia ser a terça parte, se perdeu na podre, na molhada, na quebrada, e na furtada, de que nunca se soube parte.
Recolhendo-se após isto, António de Faria, para a sua embarcação, não atendeu aquele dia a mais que visitar e prover os feridos, e agasalhar os soldados, por ser já quase noite; e quando ao outro dia foi manhã clara, foi ao junco grande que tinha tomado, o qual estava ainda cheio de corpos mortos do dia anterior, e mandando-os lançar todos ao mar, da maneira que estavam, só ao perro do Coja Acém, por ser mais honrado e merecer mais fausto e cerimónia nas suas exéquias, o mandou tomar assim vestido e armado como ainda jazia, e feito em quartos o mandou também lançar ao mar, onde a sepultura que então teve o seu corpo, por assim o merecer sua pessoa e suas obras, foram buchos de lagartos, de que andava grande quantidade a bordo do junco, à carniça dos mortos que se lançavam, e ao qual António de Faria, em lugar de oração que lhe rezava pela alma, disse: