A Cisne não fugia à regra, havendo sempre narradores de serviço, quer de noite, quer de dia, durante os longos períodos de ócio, sobretudo quando a nau pairava em calmaria. Ele próprio já fizera pasmar os seus companheiros de viagem com o relato do seu cativeiro pelo formidável Soleimão Dragut, seguido da revolta dos mouros em Mocaa sobre a venda dos cativos cristãos e, por fim, dos seus infortúnios como escravo de um renegado.
– Enquanto viver, hei-de arrenegar do maldito grego, que quase me matou com trabalhos, pancadas e fome – concluíra, ufano da atenção da assistência, que durante o seu relato lhe fizera muitas perguntas sobre o mouro Dragut e os seus corsários. – Nos três meses em que estive em poder daquele demónio, senti-me tão desesperado que, por oito vezes, me quis matar com peçonha, mas Nosso Senhor deu-me forças para resistir até o judeu Abraão Muça me resgatar e levar para Ormuz.
Nessa noite, é Bento Castanho, homem já de cãs, discreto e bem criado, que tem a seu cargo o desenfadamento de um bom número de ouvintes, entre os quais se acha um mercador de Aveiro, a viver há mais de dez anos com a sua mulher em Cochim. Fernão junta-se ao grupo, na esperança de ouvir falar dessa colónia de casados e das oportunidades de fazer fortuna. O homem, porém, conta a história da fortificação de Diu, o porto de escala antes de Goa onde lançariam ferro.
– O sultão Bahadur, do reino de Cambaia, na península do Guzarate, deu permissão ao capitão Martim Afonso de Sousa e ao governador Nuno da Cunha para construírem uma fortaleza em qualquer lugar de Diu à sua escolha, em troca da ajuda que recebera, e haveria de receber sempre que dela houvesse mister, contra os seus inimigos, os mogores23 do reino de Deli. No dia vinte e um de Dezembro de mil quinhentos e trinta e cinco, vai fazer três anos, o governador lançou a primeira pedra para a sua construção, enterrando muitas moedas de ouro debaixo dela, para dar sorte. Trabalhámos que nem uns desalmados, todos os que vínhamos na armada (escravos, matalotes, soldados, oficiais e fidalgos), mas acabámos a obra em seis meses.
– Pelos ossos de meu pai! – exclama Fernão, incrédulo, recordando-se das dimensões e imponência da construção, muito embora tivesse chegado a Diu aturdido da extenuante viagem da carreira da Índia e, ocupado em buscar um rumo para a sua nova vida nos escassos dias que ali passara, pouco ficara a conhecer da sua história. – Fizestes aquela fortaleza em apenas meio ano?
– Juro-vos pelos Evangelhos que é verdade, pois laborei nela duramente! A fortaleza, pelo lugar onde se achava, era cousa de tanta sustância para o serviço d’el-rei D. João III, que deu causa à inimizade entre Nuno da Cunha e o Martim Afonso de Sousa. O governador queria ter a honra de fazer aquela fortaleza, porém o capitão adiantou-se-lhe e tratou do negócio com Bahadur.
Fernão solta uma gargalhada e, vendo a estranheza que o seu riso causa, justifica-se:
– Pouco antes de eu vir para cá, chegou a Lisboa a notícia da construção da fortaleza. Foi o piloto Diogo Botelho Pereira que a levou, navegando desde Cochim numa pequena fusta, que foi cousa espantosa de se ver.
– Esse Diogo Botelho fez a volta da Índia, de Cochim para o reino, numa fusta? – pergunta o mercador aveirense, com assombro. – Não o posso crer!
– Uma proeza bem singular, de verdade – confirma Fernão. – Durante muito tempo não se falou de outra cousa no reino. A fusta era o que mais fazia pasmar as gentes que acorriam de todos os lugares para a ver, pois parecia impossível que alguém pudesse fazer nela tão espantosa viagem.
– Diogo Botelho partiu de cá sem licença do governador, que quase ensandeceu de raiva! – É a vez de Castanho rir com gosto: – Era mais um que lhe passava a perna e fazia perraria! Nuno da Cunha temia que Martim Afonso de Sousa se lhe adiantasse a mandar a notícia a el-rei D. João para receber as alvíssaras, por isso se dava muita pressa a concertar uma boa nau para enviar a nova ao reino por Simão Ferreira, o seu secretário de confiança. Não desconfiou do piloto e mestre esférico24 que tirava as medidas à fortaleza e lhe fazia os debuxos dela, os quais o atrevido também levou a el-rei D. João, junto com o traslado das capitulações do tratado de paz entre Bahadur, rei de Cambaia, e o governador Nuno da Cunha.
– Não foi esse Diogo Botelho Pereira que el-rei degredou para cá, como castigo da sua prosápia em lhe pedir, sendo quase menino, a capitania de Chaul em troca dos seus serviços como fazedor das cartas de marear, em que era mestre apesar de tão moço?
– Esse mesmo, sem tirar nem pôr – retorque o soldado da Índia ao mestre que aproveita o tempo morto da navegação para se juntar aos passageiros. – Ele já aí está de novo, pois veio do reino, no ano de trinta e quatro, com o capitão-mor Martim Afonso de Sousa que se gaba de o trazer manso como um cordeiro! Diogo é filho natural de António Real, antigo alcaide de Cochim, e foi o primeiro português a nascer na Índia. É levado do diabo! Inda antes de vir ao mundo já a sua história dava que falar.
– Nasceu cá? Então é pardo?
– Não, é branco. Iria Pereira, a sua mãe, foi também a primeira portuguesa a vir para a Índia, logo no ano de mil quinhentos e cinco, dando muito que falar por ter embarcado às escondidas, vestida de homem, na nau do vizo-rei D. Francisco de Almeida.
– Foi uma viagem dos diabos! – lembra o capitão.
– Ninguém desmascarou a moça na nau? – espanta-se Luzia de Aveiro, a esposa do mercador, também ela portuguesa.
– Se foi descoberta, ninguém a denunciou.
– Que lhe aconteceu? – insiste a matrona. – Havei-la conhecido bem?
– Sim, eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas que Afonso de Albuquerque lhes requereu e António Real não lhe quis entregar.
– O governador cobiçou-lhe as moças? – pasma a mulher.
– Não, queria apenas dar-lhes alforria e dotes, como fazia a muitas outras gentias, livres ou cativas, a quem mandava criar como cristãs, cuidadas por donas honestas, para as casar com portugueses, gente limpa que ficasse a morar na Índia, nas terras que para isso ele lhes dava.
– O Terríbil conhecia bem a Índia e sabia como a manter – concorda o capitão. – Mais do que pela força das armas, as terras conquistadas só quedariam em nosso poder se tivéssemos gente nossa a viver nelas e a criar raízes. Para tal havia mister de mulheres e, à míngua de portuguesas, decidiu lançar mão das cativas mouras e das gentias.
– António Real ganhou-lhe um ódio mortal e buscou por todos os meios fazê-lo cair em desgraça, intrigando junto dos fidalgos e capitães da Índia do partido do vizo-rei D. Francisco de Almeida, que era também inimigo do governador.
– Feia aleivosia! – indigna-se o mercador. – A inveja e a inimizade que os portugueses têm uns aos outros dão quase sempre causa a que se danem os negócios importantes, sobretudo quando topam com alguém que trabalha para o bem de todos e da nação. Lembro-me dessa guerra entre o governador e o vizo-rei, porque D. Afonso de Albuquerque lhe requeria o governo da Índia e D. Francisco de Almeida recusava-se a entregar-lho, apesar de ter terminado o seu mandato e das ordens de D. Manuel para lho largar.
Castanho, que servira como soldado da armada no tempo em que Albuquerque ainda era capitão-mor, recorda com alguma amargura:
– D. Francisco ficara muito ufano pela sua grande vitória sobre os rumes e trabalhara muito para que os capitães e fidalgos seus amigos escrevessem a el-rei D. Manuel uma carta assinada por todos pedindo para ele continuar como vizo-rei da Índia. Contudo, pior do que a oposição dos fidalgos que não queriam perder os seus privilégios, foi a conspiração do bando de Cochim, com o António Real à cabeça, que lhe levantou falsos testemunhos de roubos e conluios com os reis mouros e gentios, mal Albuquerque entrou no cargo de governador. El-rei D. Manuel, que Deus tenha em sua glória, era mui crédulo e deu razão aos mexeriqueiros, causando tamanha paixão ao Terríbil que lhe apressou a morte.