As conversas são como as cerejas, cogita Fernão, puxa-se uma e vem logo uma dúzia atrás: Diu e Cochim, Iria e Real, Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque! Do Terríbil, sabia algumas histórias ouvidas na casa do Senhor D. Jorge, que atribuía as razões da animosidade de D. Manuel para com Albuquerque, por este ter sido estribeiro-mor, amigo e admirador de D. João II. O Venturoso, assim que subira ao trono começara a desfazer tudo o que o cunhado fizera e a afastar todos os homens da sua confiança.
– Albuquerque só pensava no serviço d’el-rei e do reino, não deixando essa gente roubar como queria. Ele nunca guardou nada para si, toda a gente sabe isso na Índia! – volve o aveirense que sentia muita sanha dos oficiais e fidalgos que se dedicavam ao corso e ao comércio privado, em vez de se empenharem na defesa da Fazenda d’el-rei. – ’té os presentes e jóias que os sultões lhe ofereciam ele enviava a D. Manuel ou à rainha D. Maria. Podia ter ficado podre de rico, como quase todos os que para cá vêm com ofícios e cargos da Coroa, mas morreu sem nada, pedindo a el-rei para lhe proteger o filho!
– Os de agora fazem o mesmo – comenta um tratante25, natural de Ormuz que falava bem português.
Castanho concorda:
– Esses capitães e feitores roubavam tanto que Albuquerque, quando tomou posse da governação da Índia, nem dinheiro tinha para a mantença e soldos dos homens que andavam nas batalhas, chegando a oferecer as suas barbas, a uns ricos mercadores gentios, como penhor de um empréstimo, a fim de lhes pagar.
O mercador de Aveiro acrescenta, como quem conhece bem aqueles sucessos:
– Vendo que o governador tomava Goa para fazer dela a capital da Índia, António Real e o seu bando moveram céu e terra para que el-rei ordenasse o seu abandono, pois só assim Cochim poderia manter a sua importância e eles os seus privilégios e proveitos.
– Albuquerque sabia bem o que se devia fazer para governar e conservar a Índia – contrapõe Castanho. – Não desistiu de Goa, porque em todo o Malabar não havia outro porto que se lhe pudesse comparar, para manter vigia sobre os mouros guzarates.
– Muito me prazeria conhecer essa história de Cochim e da inimizade de Albuquerque com o vizo-rei assim como com António Real e o seu bando – roga Fernão.
– E a de Iria Pereira e do seu filho também – suplica a mulher –, já que vossa mercê abriu o apetite à minha curiosidade, pelo modo como sabe contar uma história, que até parece que estamos lá a ver e a ouvir.
– Se quereis saber como tudo se passou – anui, agradado do elogio –, eu vo-lo contarei com toda a verdade, porque a tudo fui presente.
Com um murmúrio de aprovação, cada um se acomoda o melhor que pode no espaço exíguo e desconfortável da coberta para ouvir o soldado da Índia que, como aquela dona dizia, é um bom contador de histórias. Bento Castanho cerra os olhos por momentos, como para arrumar as ideias, e começa:
– Para conseguir a fortaleza de pedra, o vizo-rei jogou com a gratidão e o receio do soberano a quem, no ano de mil quinhentos e três, os portugueses tinham ajudado a vencer o exército do Samorim de Calecut, livrando-o da sua vassalagem e fazendo dele um rei muito mais poderoso. Em paga desse auxílio, Huriabem26 permitira aos primos Albuquerque a construção de um forte de madeira na boca do rio, o lugar escolhido pelo feitor Diogo Fernandes Correia, por ter uma bela baía onde se poderia fazer um amplo porto para carregar as naus. Ao longe, os três grandes rochedos, dispostos em fileira e seguindo a linha da costa, pareciam sentinelas vigilantes.
Pela sua privilegiada situação, a sul de Calecut, Cochim era a escolha óbvia para capital da Índia portuguesa, necessitando para tal de uma fortificação de pedra e cal, defendida por muralhas, uma forte artilharia, sustentada por uma boa povoação de gente lusa com cristãos da terra que, em pouco tempo, se convertesse numa cidade populosa e próspera.
D. Francisco de Almeida viera determinado a fazê-la, recorrendo a todos os meios pacíficos, como odiaas27, peitas e promessas de futuros benefícios, para vencer a relutância d’el-rei Huriabem, o qual, muito embora predisposto a satisfazer todos os pedidos dos seus aliados cristãos, achava que uma construção muralhada, armada com grossa artilharia seria uma clara manifestação de medo face aos seus potenciais inimigos e, portanto, uma grande perda da sua honra. Para mais, querendo o vizo-rei construir edifícios cobertos de telha, um privilégio de que em todo o Malabar apenas gozavam as casas dos reis ou os templos dos seus pagodes28 e que, por uma antiga lei de Calecut, era também interdito aos pouco poderosos reis de Cochim, que se arriscavam a perder o reino em caso de desobediência.
Não querendo de nenhum modo agravar quem lhe concedera o monopólio da pimenta, carregando-lhe em cada ano todas as naus do reino com a preciosa especiaria, D. Francisco fingira acatar a determinação do soberano e fizera construir uma grande povoação de muitas ruas com casas de madeira sobradadas29, cobertas de palha ao modo malabar, onde também havia boticas e tendas da gente da terra que vendiam toda a sorte de coisas de comer, boas e baratas. Ao mesmo tempo, peitava em segredo os caimais – os seus duques e condes –, bem como os regedores do reino, fazendo-lhes grandes honrarias e cumulando-os de presentes; como o seu filho Lourenço conquistara a amizade do príncipe herdeiro, que lhe chamava irmão, contava ter nele um formidável aliado.
O rajá, todavia, não se decidia a satisfazer-lhe o pedido e o vizo-rei recorreu a remédios mais extremos. Mandou a alguns dos seus homens de confiança que escondidamente fossem lançar fogo às casas de madeira dos portugueses e da feitoria (que mantinha vigiadas para não deixar o fogo alastrar e consumir as mercadorias armazenadas), recompensando os donos pelos seus prejuízos à custa do rei Huriabem que lhes pagava os soldos. Por fim, fizera incendiar a sua própria casa e a igreja, que deixara arder até ao fim, para ter maior razão de queixa contra os mouros de Calecut que, a mando do Samorim, queriam escorraçar de Cochim os portugueses que defendiam el-rei contra os seus inimigos.
Nessa tarde, apresentara-se com o seu filho na corte do rajá, para agradecer a preocupação e o pesar que Sua Alteza manifestara pelo desastre. Apesar de muito moço, D. Lourenço ganhara o cognome de Aquiles Português, por ser um formidável guerreiro e se mostrar indestrutível em combate, com a sua armadura branca e a portentosa alabarda. Quando ia aos paços reais, nunca deixava de levar a arma, por saber quanto a sua vista maravilhava o próprio rei, que sempre lhe pedia para fazer algumas demonstrações com ela.
– Não haverá mais trabalho nem medo do fogo – anunciara o príncipe, indicando D. Lourenço que se mantinha respeitosamente atrás de seu pai –, porque este valente cavaleiro me confirmou que vem para o matar com a sua poderosa alabarda.
Era a arma mais espantosa que gentios e mouros alguma vez haviam visto no Oriente: uma haste grossa, chapeada com uma barra de ferro, dourada e retorcida em redor dela, com uma lâmina de quase meio côvado30 de comprimento, tendo no revés um bulhão ou punhal de três pontas e um punção roliço; na outra extremidade da haste, brilhava o aço de um ferrão quadrado, também de meio côvado. Era tão pesada que nenhum outro homem na armada a conseguia menear.
– E como haveis de o matar? – perguntara el-rei, rindo.
– Senhor, de um só golpe todo o matarei. Assi! – respondera D. Lourenço e, levantando a alabarda, desferira um golpe no chão com tamanha força que a lâmina toda se meteu pelo sobrado dentro, arrancando muitos aplausos e brados de espanto aos assistentes.
– Não há dúvida que com tal golpe já todo o fogo será morto – felicitara-o Huriabem, encantado.