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– Senhor, eu bem vejo que não posso escapar das chamas – dissera D. Francisco, em tom de profunda tristeza, aproveitando a boa disposição d’el-rei e dos cortesãos para apresentar um novo pedido. – Mais tarde ou mais cedo, o fogo queimará as casas onde guardo as fazendas d’el-rei de Portugal, vosso irmão, e os aparelhos dos navios da armada, que será a maior perda. Eu fui criado na guerra e nunca tive receio dela, mas agora tenho medo do fogo que qualquer mouro de Calecut me poderá pôr na porta, o que não me deixa repousar nem de noite nem de dia. Rogo a Vossa Alteza, por grande mercê, que, em lugar das casas de canas e ola31 que nos arderam, mas deixe fazer de pedra e telha, à nossa maneira, onde tudo esteja seguro. Porque, se o não puder fazer, ainda que eu e todos os portugueses estejamos prontos para morrer por vosso serviço, teremos de ir invernar em Angediva.

Huriabem acabara por ceder aos rogos do príncipe e dos caimais, para que não fizesse inimigos daqueles poderosos estrangeiros que o haviam socorrido na guerra, e dera o seu consentimento ao vizo-rei para a construção da fortaleza em pedra, com a condição de não cobrir imediatamente os edifícios com telha, a fim de não escandalizar os seus súbditos. D. Francisco lançara logo mãos à obra, pondo a gente comum e os fidalgos a trabalhar lado a lado, sem lhes dar descanso, a acartar e assentar pedra, a escoar com baldes a água das fundações, que eram muito próximas do mar, ou a fazer qualquer outra tarefa necessária. O rajá e o príncipe vinham visitar as obras e pasmavam de ver os fidalgos cobertos de lama a partir pedra ou vergados sob o peso de cestos e baldes.

– Nobres cavaleiros a trabalharem como escravos! – exclamara Huriabem. – Quem me dera ser rei de tal gente que assi se sacrifica pelo seu soberano, mesmo quando se acham no outro lado do mundo, longe das suas vistas!

– Só lhes faz bem, Alteza – rira-se o vizo-rei –, porque ficam com os braços mais compridos, o que lhes dará vantagem na guerra, quando empunharem a espada ou a lança.

Vestido, como sempre, de um saio32 de lã e boleta aberta do mesmo tecido, carapuça branca na cabeça e uma caninha na mão, D. Francisco distinguia-se pela simplicidade do trajo e nobreza da figura, a percorrer a obra cada dia, provendo a todos e tudo vigiando. Dava pressa aos homens, ansioso por terminar os panos das muralhas e as fortificações, não fosse o rajá mudar de aviso e suspender as obras, escondendo as bombardas que mandava trazer desmontadas das naus, durante a noite, para não criar alarme nos gentios e mouros que poderiam denunciá-lo a Huriabem.

A conclusão dos trabalhos, em tão breve tempo que aos próprios construtores admirara, fora festejada com procissão, muitos comeres, música e danças de moças gentias.

– E Iria? Que parte teve nessa história? – pergunta a mulher do mercador, enfadada com os desvios que os homens davam constantemente à saborosa prática sobre as cativas, para murmurarem das invejas dos capitães e das lutas pelo poder. – Contai-nos, por vossa vida, o resto da sua lenda.

– De início, como vos disse antes, a vida parecia correr-lhes bem, mas quando começaram as guerras entre Afonso de Albuquerque e o bando de Cochim, Iria Pereira apartou-se de António Real ou ele dela.

O som de um apito interrompe-o e o grumete, que acaba de virar a ampulheta, diz com voz entoada:

– Uma hora passou,/ outra começou/ melhor há-de ser/ se Deus quiser. – E logo brada: – É meia-noite. A pé, grumetes, qu’é o quarto da modorra, a pé!

Por momentos a Cisne anima-se com o movimento dos matalotes que trocam de turno e alguns dos assistentes erguem-se com pena de deixar a história por acabar. Bento Castanho conforta-os:

– Vejo que se fez tarde, meus amigos. Ide dormir, que amanhã aqui estarei para contar a história de Iria, se houver quem ainda me queira ouvir.

Com muitos risos, bênçãos de bem haja!, Deus vos bendiga! e desejos de uma santa noite, todos se recolhem às câmaras, catres ou recantos onde têm lugar para estender a esteira ou a rede de dormir.

– Céu salteado, vento fresco e variado! – entoa ao longe uma voz, que muitos já não ouvem.

21 Rota, navegação.

22 Turcos de Constantinopla.

23 Povo de raça mongólica, aparentados com os tártaros, que se estabeleceu no Indostão, reino de Deli (da palavra persa mughal).

24 Geógrafo.

25 Homem que faz tratos comerciais, mercador.

26 Também denominado Nambeadora pelo cronista João de Barros.

27 Presentes diplomáticos, feitos pelas embaixadas aos reis, aos grandes senhores e principais autoridades.

28 Na Peregrinação, pagode tanto pode significar templo como representação do deus, o ídolo.

29 Com mais de um piso e soalho de madeira.

30 Antiga medida de comprimento equivalente a três palmos, cerca de sessenta e seis centímetros.

31 Folhas de uma certa palmeira que serviam para a cobertura dos edifícios.

Só as casas dos reis e os templos podiam ser cobertos de telha.

32 Saio – camisa até aos joelhos, de mangas largas, usada pelas classes baixas.

Quando falares, cuida que tuas palavras sejam melhores que o silêncio

(hindu)

Carta de Afonso de Albuquerque a el-rei D. Manueclass="underline"

Senhor: Vossa Alteza me culpa, me culpa, me culpa em algumas cousas de cá da Índia, e creio que será por má informação que vos de mim darão algumas pessoas, com inveja e dor de meus feitos e meus serviços.

Os que vos estas cousas escrevem, não andam em minha companhia, nem me vêem o rosto, nem são companheiros em meus trabalhos, perigos e fadigas, nem vestem as armas, mas querem ganhar autoridade em vos escreverem mil enganos e falsidades; pronosticam e profetizam, falam com feiticeiras que lhes digam o que está por vir, e ajuntam toda essa massa, de que fazem esse pastel que lá mandam a vossalteza cada ano e não vos deixam tomar verdadeiro assento nas cousas de vosso serviço, nem determinar o caminho que quereis que leve o negócio da Índia.

Digo-vos, senhor, isto, porque se bem olhardes vossos regimentos e determinações, cada ano vem um contrairo ao outro, e cada ano fazeis uma mudança e haveis novo conselho, e a Índia não é o castelo da Mina, para cada ano bulirdes com ela, porque há nela muito grandes reis e senhores que s’esforçam a vos defender que não segureis vosso estado nela, nem vos façais forte na terra, nem lhe ganheis os lugares principais; e estão confiados que haveis de leixar a Índia

E vossalteza ajuda-os a seu propósito, porque uma hora pondes um emplastro para este feito vir a furo, outra hora lhe pondes defensivos que não crie matéria; e tanto pode vossalteza ir por este caminho, que dareis com todo feito no chão.

De Cananor ao primeiro dia de Dezembro de 151333.

Passavam já três relógios do quarto da prima34 quando Bento Castanho recomeça a saga de Iria Pereira e Fernão Mendes semicerra os olhos e deixa-se ir, no sabor das palavras do narrador, ao encontro do passado e daquela valente mulher, para lhe imaginar a vida e a luta em Cochim, longe da família que a trouxera ao mundo e da terra onde deixara as suas raízes.

Iria Pereira tomara a longa navegação do reino para a Índia, sete anos antes, como castigo e expiação dos seus pecados, sofrendo sem um queixume um terrível martírio durante mais de sete negregados meses escondida na S. Jerónimo, a nau de D. Francisco de Almeida, o vizo-rei da Índia. Muitos homens fortes haviam sucumbido às agruras da infernal viagem e só por milagre da misericordiosa Santa Iria, sua protectora, é que ela não morrera nem tivera um desmancho, encafuada num buraco malcheiroso, para não denunciar a sua presença, contando apenas com a ajuda do primo, presa de terríveis vagados que ora a deixavam prostrada, como desacordada, ora a faziam botar a comida e o estômago pela boca, mareada de morte.

O último mês de viagem – Outubro de mil quinhentos e cinco –, coincidira com o fim da sua prenhez e, apesar do incómodo peso e do calor, fora menos penoso do que os anteriores. Por terem partido de Lisboa em Novembro, sofrera o primeiro Inverno quase até Cabo Verde, logo seguido de um Verão de grandes calmas, ao passarem a linha equinocial; contudo, fora muito pior o segundo Inverno, cerca do cabo da Boa Esperança, quando nevou no dia de S. João e seguintes, com tanta força que os grumetes passavam horas a lançar a neve dos navios às pazadas. O vizo-rei e os demais fidalgos não saíam dos seus aposentos, assando-se aos braseiros, por ser menor o perigo do fogo, e os homens que andavam nas fainas traziam todos os seus fatos vestidos, em camadas sobrepostas de saios e gibões, bragas e calças, botas, borzeguins e sapatos, barretes, boinas e sombreiros, e até cabeleiras de vestir35! Iria fizera outro tanto, mas quase perdera os dedos das mãos e dos pés.