Depois adviera medonha tempestade quando, para fugir do frio, se tinham acercado de terra: ondas altíssimas pareciam querer engolir as naus e, no seu esconderijo, sobrepondo-se ao bramido do mar e ao estrondear da trovoada, chegavam-lhe os gritos e rogos que os matalotes lançavam aos céus, encomendando a salvação da sua alma a Jesus Cristo ou a Nossa Senhora, e ela orara também em silêncio, à espera da morte. As suas vozes haviam chegado aos céus, porque o temporal amansara antes de os navios se desfazerem e serem engolidos pelos mares.
Nesse Inverno rigorosíssimo muitos homens caíram enfermos de prioris36 e febres e, juntamente com a esposa java do língua veneziano, o vigário Diogo Pereira, seu parente, e os padres da sua companhia, ela oferecera-se para ajudar o mestre barbeiro e sangrador a cuidar dos enfermos, entre os quais se achava o seu homem. Fosse por ser a companheira de António Real, que era da privança do vizo-rei, ou quiçá pelos seus bons serviços e dedicação aos doentes, ninguém a denunciara, permitindo-lhe até uma maior liberdade de movimentos durante o resto da viagem.
Após a conquista de Quíloa, a S. Jerónimo ecoara com os risos e brados dos homens a festejarem ruidosamente a vitória e o saque, a que se seguiram os gritos e prantos, logo abafados com pancadas, promessas ou ameaças, das cativas tomadas por prémio e galardão dos vencedores, que nelas cevavam o cio e o jejum de muitos meses sem conversação com mulheres, em luta diária com a morte. Feitas as pazes com el-rei, D. Francisco obrigara os homens, não sem muitos protestos e resistência, a libertar todas as mulheres e a restituí-las às suas famílias. Com a cidade segura, enquanto os portugueses faziam a fortaleza, Iria pudera desembarcar por mais de uma vez, andar pela praia e pelas ruas em companhia de António, vestida com um saio largo de homem, sentindo já o filho de ambos a germinar no seu ventre.
Com a conquista e destruição de Mombaça, Iria sentira-se no céu, em vez do inferno que até então fora para si aquela prisão do mar, como chamavam às naus os que lhes sofriam os horrores da pousada. O vizo-rei mandara anunciar com pregão em todos os navios que, das cativas ganhas no saque, os homens só poderiam levar para a Índia as que tivessem menos de doze anos, sendo obrigados a desembarcar as restantes mulheres, sob pena de grandes castigos em caso de desobediência. Com muitas crianças na S. Jerónimo, de serviço aos fidalgos e homens baixos – dando azo a cenas ainda mais pungentes e brutais do que as de Quíloa –, Iria metera-se no aposento de António, com as duas meninas mouras que ele trouxera para bordo e assim fizera o resto da viagem como se fora sua esposa, sem que ninguém lho estranhasse ou defendesse.
Apiedada das cativas, que não teriam mais do que uns oito ou nove anos de idade, tratara-as com bondade, consolando-as na sua desdita e ensinando-as a falar português, para melhor se entenderem; Zobeida e Giauhare mostravam-lhe a sua gratidão prestando-lhe toda a ajuda que podiam, para maior conforto da sua prenhez. António, pelo contrário, inspirava-lhes um verdadeiro terror ou ódio, que as fazia tremer e chorar sem tino e nem boas palavras, meiguices ou presentes logravam sossegá-las. Embora ele o não confessasse, Iria adivinhara que as meninas o tinham visto matar-lhes a família, roubar-lhes e incendiar-lhes as casas, antes de as levar à força para a nau.
Em meados de Outubro, sofrera o último sobressalto da viagem que quase a fizera parir antes do tempo, quando D. Francisco de Almeida decidira ir na capitaina castigar el-rei de Onor, queimando-lhe a frota e os navios de carga surtos no porto. O fogo pegara-se à cidade, pondo toda a gente em fuga como formigas em debandada e Iria a muito custo lograra consolar as duas cativas, a quem o estrondear das bombardas, o fumo e o cheiro da pólvora traziam à memória o inferno de Mombaça ainda tão próximo. Por fim, Timoja, o temível corsário malabar, aliado d’el-rei de Onor, viera como embaixador à S. Jerónimo para tratar da paz e fazer daquele reino vassalo de Portugal. Feliz aliança, pois Afonso de Albuquerque a ele ficaria a dever, em parte, a conquista de Goa!
Finalmente em Cochim, onde haviam desembarcado no primeiro dia de Novembro, a fortaleza de madeira, com a sua pequena povoação de casas de troncos e cobertura de folhas de palma, causara-lhe desilusão e temor. Enquanto António não era provido no seu cargo, ainda ocupado pelo oficial em funções, fora-lhe atribuída para moradia uma dessas cabanas, junto ao baluarte, onde ela vivera em contínuo sobressalto do fogo, dominando os medos para não enfadar o seu homem e acorrendo sempre ao toque do sino para combater as chamas.
Graças a Zobeida e Giauhare, não sentira solidão, apesar de ser a primeira portuguesa a pisar terra da Índia, uma proeza de que muito se orgulhava. Poucos dias após a sua chegada, apenas instalada na sua nova casa e com a ajuda das meninas e de uma parteira malabar, dera à luz o filho naquele mundo onde tudo lhe era estranho. Quase morrera de susto, quando a aparadeira gentia a lavara e ao filho, por três vezes, em água quente e fria e não enfaixara a criança, como era de uso em Portugal. Os homens fazem as leis, as mulheres os costumes!, pensara, decidida a aceitar os modos da terra que não fossem contra a sua religião e natureza e este do banho, sobretudo quando estava com as regras – o que era proibido pelos físicos portugueses como coisa prejudicial e muito perigosa – , era afinal um preceito prazeiroso que adoçava os sentidos.
Não se queixara, nem se arrependera da sua vinda, porque, se era esse o preço a pagar para estar com o homem que amava, dava por bem empregue o sacrifício. No ano seguinte, Iria assistiria maravilhada à reconstrução da fortaleza em pedra e cal, ordenada por D. Francisco de Almeida, que lograra o grande feito de convencer el-rei a dar-lhe permissão para a fazer assim forte e cobrir de telha os seus edifícios e as casas da nova povoação. Como alcaide-mor de Cochim, António tivera direito a casa dentro da fortaleza, para onde Iria se mudara com o filho e as meninas.
Decorridos já oito anos sobre esses sucessos, Iria ainda gostava de passear ao longo das ameias e varandas das suas altas muralhas, levando Diogo pela mão e contando-lhe histórias. Era uma bela construção de forma quadrada, tendo nas duas esquinas do lado da praia cubelos de dois sobrados, cobertos com pasta de chumbo e guarnecidos de ameias; nas outras duas esquinas erguiam-se as torres quadradas também de dois sobrados, o de cima para as casas do capitão e do alcaide-mor com a sua gente, o de baixo para armazéns de mercadorias grossas.
Caminhando pelas varandas que ligavam as torres, mãe e filho podiam ver, no lado de dentro, o pátio com o grande poço no meio e a casa da tranqueira que fora reforçada, onde viviam o feitor e os restantes oficiais. A porta abria para o lado do mar e, no interior, tinham construído um vasto alpendre com bancos muito bem lavrados onde o vizo-rei vinha tomar o fresco com os seus fidalgos. Já não necessitava de levantar Diogo nos braços para ele ver a ribeira em que se varavam as naus, com os estaleiros para a sua reparação e também construção de navios tão bons como os de Portugal. Agora, o menino alçava-se em bicos dos pés a olhar maravilhado para o vaivém dos elefantes de trabalho que transportavam nas trombas os pesados troncos de madeira, cortados pelos lenhadores da casta dos revolons, para os locais indicados pelos cornacas seminus escarranchados nos seus cachaços.