O filho fizera-se um esbelto rapazinho, assaz alto para a idade e de engenho muito vivo, que aos sete anos já sabia ler muito bem, embora escrevesse ainda com alguma dificuldade; em breve teria de lhe arranjar um verdadeiro mestre, pois já lhe ensinara tudo quanto sabia e o casado Afonso Álvares, que tinha a seu cargo o ensino dos meninos gentios entre os onze e os quinze anos, só servia (e mal!) para ensinar a língua portuguesa. Não desejava para Diogo a carreira das armas e jurara fazer dele um letrado ou um doutor, nem que para tal tivesse de enfrentar António.
Decidira também educar Zobeida e Giauhare o melhor que lhe permitiam o lugar e as circunstâncias em que vivia. O vigário e os padres usavam as cartilhas para ensinarem às crianças gentias a língua portuguesa e o catecismo, embora algumas orações fossem trasladadas para maliama37. As duas moças aprenderam o pater noster, a ave Maria, o credo e a salve regina em latim e em linguagem comum, como quaisquer meninas portuguesas, para poderem receber o baptismo. Por outro lado, Iria encarregara-se de lhes proporcionar outras leituras, através dos livros que trouxera ou que António lhe mandava vir do reino.
Rebelde e aventureira, de mente curiosa, estava grata ao pai que a fizera aprender a ler e a escrever, por não poder dar-lhe um dote que lhe assegurasse um bom casamento ou a entrada num convento – um destino que nem em sonhos desejava. Quando descobrira que ela se entregara a António, a mãe acusara o marido, os livros e as leituras que ele aconselhara à filha mais nova de lhe terem tirado o siso e metido em trabalhos, trazendo a desonra à família: Encheram-lhe a cabeça de fantasias e ela perdeu-se. António Real nunca a desposará sem um dote chorudo. E nós, que mal temos dinheiro para comer, como poderemos dar-lhe dote? Eu morro de vergonha!. Iria não quisera crer na mãe e, iludida pelas promessas do amante, embarcara atrás dele para aquele fim de mundo.
Caminhar pelas ameias dava-lhe sossego para pensar. Nunca fora seu costume evocar o passado ou a família, nem lamentar-se ou sentir arrependimento, mas agora chegara o momento de repensar a sua vida e tomar nas próprias mãos as rédeas do seu destino. Não sentia saudades da sua terra, aonde não desejava volver desonrada, apontada a dedo como mulher solteira com um filho, pois António não casara com ela, nem perfilhara Diogo, conforme a mãe lhe havia prognosticado. O menino fora baptizado e registado sem nenhum apelido do pai e com o Botelho no meio, para se distinguir do vigário que o baptizara e do feitor da fortaleza, seu padrinho, ambos chamados Diogo Pereira.
Reconhecia agora que António nunca pensara em cumprir a sua promessa, crendo ficar livre de amores indesejáveis ao partir para a Índia. Jamais lhe passara pela cabeça que ela o haveria de seguir naquela aventura, até a ver à beira do seu catre na nau, por altura do cabo da Boa Esperança, a cuidá-lo da febre e lhe perguntar se ela era sonho ou desvario das sezões. Nos primeiros tempos em Cochim, perdidamente enamorada e ocupada com o filho, embora estranhasse não lhe ouvir falar no casamento, ao conhecer a vida livre e sem pejo que levavam os homens e mulheres na Índia, aceitara a sua mancebia como coisa natural que haveriam de resolver no regresso ao reino.
O seu olhar pairou sobre a povoação de casas brancas com telhados vermelhos, tão distintas de todas as outras daquele mundo. Aprendera a gostar de Cochim-de-Baixo, um lugar muito aprazível, espécie de ilhota atravessada por numerosos cursos de água, com o rio principal correndo para o mar por entre bosques verdejantes de árvores de canela brava ou do mato, de gengibre e de pimenta, a qual crescia como a hera em torno de outras árvores e palmeiras ou em latadas de onde pendiam os cachos dos seus frutos. A povoação desenvolvera-se rapidamente, convertendo-se numa cidade muito populosa e rica, graças à construção de navios e ao movimento do porto com o trato da pimenta e outros produtos.
Para o interior, separada por um rio que se podia passar a vau, ficava Cochim-de-Cima, uma vastíssima urbe com casas ao modo malabar, de madeira e ola, onde vivia o rei com a sua corte e cuja população seguia a religião dos seus pagodes. Ali, todos os dias tinha lugar uma grande feira, onde vinham mercadores de todas as nações comprar produtos da região, em particular a melhor pimenta que se cultivava na Índia. Para lá dos limites desta urbe existia outro importante lugar com uma comunidade muito rica de tratantes guzarates, de que ela apenas ouvira falar, pois onde houvesse mouros, os portugueses não estariam seguros, muito menos uma mulher branca, moça e de bom parecer.
33 Fontes dos capítulos: Cartas de Afonso de Albuquerque (Academia Real das Ciências de Lisboa); Segunda Década da Ásia, livro V, de João de Barros; Mulheres Navegantes, de Fina d’Armada; outras.
34 Quarto da prima era o primeiro turno da noite, das oito horas à meia-noite.
35 Perucas.
36 Pleurisia.
37 Forma aportuguesada de malaiala, malaiálam ou malaiálim, a língua do Malabar, da família dravídica, a que também pertencia o tâmil.
O homem é o seu próprio demónio
(hindu)
Carta de António Real a el-rei Dom Manueclass="underline"
O serviço que vosso capitão-mor [Afonso de Albuquerque] fez, depois que veio de Malaca, é este: meter-se nesta fortaleza com quarenta ou cinquenta putas, que, logo como chegou, mandou por elas a Goa, e outras que trazia de Malaca; e meteu-se com elas todas em uma torre, sem nunca sair, nem lhe poder falar homem nem mulher, nem requerer nada .
E, para verdes, senhor, quão bem guardada deixou esta fortaleza, levou toda a gente consigo e não deixou ninguém; e na torre da menagem, deixou todalas suas quarenta ou cinquenta putas, taipadas, e com capados dentro, em guarda; e por porteiro um Gonçalo Afonso, mealheiro; e deixou-lhes, para passearem, além da torre da menagem, toda uma sala e dous cubelos, sem nunca as ver ninguém, que não sei mosteiro de freiras tão encerrado; e eu pouso em um cubelo, sobre a porta, donde faço minhas vigias.
E estes são os homens que aqui deixou para guardarem a fortaleza; e diz que as tem assi guardadas para as casar; e ele não casa senão as que anda tomando aos homens que as têm em suas casas, criadas de pequenas, porque as suas todas que tem, com todas dorme, e Mafamede não teve tal vida.
E umas duas moças que eu tinha, que me ele não deu, e eu tomei por minha lança em Mombaça, sorraticiamente mas trazia enganadas, com suas embaixadas, que lhes mandava, que casassem a furto com alguém, e que seriam forras. Pelo qual, sendo eu uma noite a tirar a nau Enxobregas em terra, mandou um seu negro e outros seus moços que saltassem com elas e as recebessem, e que ele faria bom o casamento. Então me saltaram em casa, e me roubaram algumas cousas, que achei menos, e as receberam.
De Cochim, aos quinze dias de Dezembro de 1512
De início, Zobeida e Giauhare eram a sua única companhia, além das escravas cafres cujo linguajar mal entendia; mais tarde, já a viver na fortaleza, fizera amizade com algumas gentias, esposas ou amásias dos oficiais e mercadores, as quais já sabiam falar português o bastante para poderem praticar e até mexericar sobre a vida da colónia e dos seus moradores, gabando-se do seu poder sobre os estrangeiros vindos do outro lado do mundo.
– Quantos amantes tens na tua terra? Há lá míngua de mulheres ou sois vós que não sabeis agradar aos homens? – perguntavam-lhe, galhofeiras, enquanto enrolavam em folhas de bétele a noz de areca e cal, que mascavam para se sentirem bem dispostas e com bom hálito. Iria tomava apenas um pouco quando as visitava, para não as ofender, porque aquela droga que homens e mulheres mastigavam desde manhã até à noite, sem cessar, fazia-lhes os dentes pretos. – Os portugueses vêm famintos de amor e, por isso, apesar de vencerem os nossos homens pela força das suas armas, são sempre vencidos pela doçura das nossas – e riam-se ainda mais, fazendo rolar os olhos e a língua em azougados e lascivos trejeitos.