Havia alguma razão no que diziam. Além de usarem as numerosas escravas – compradas ou ganhas em combates na terra ou no mar – como concubinas e barregãs, os portugueses perdiam-se de amores por essas mulheres formosas e galantes, alvas ou pardas, que se vestiam da cinta para baixo com panos de seda ou algodão, segundo a sua qualidade, e da cinta para cima andavam nuas, ataviadas de colares, pulseiras e anéis de ouro e pedraria. Iria invejava-as. Eram mulheres muito isentas38 e senhoras dos seus corpos, pelo menos as das castas superiores, porque as de baixa condição eram mais desprezadas e maltratadas do que os mais vis escravos, não podendo sequer cruzar-se no caminho, olhar, falar e ainda menos tocar em qualquer pessoa das castas superiores à sua, sob pena de morte.
Como tinham a virgindade por coisa infame e vil, causadora da condenação eterna se morressem em tal estado, entregavam-se aos homens por dez réis de mel coado, sendo educadas na arte de agradar aos amantes. As próprias mães vinham à povoação vender as meninas virgens para grande deleite dos portugueses, que as achavam mais lustrosas e prestimosas em os satisfazer do que as suas conterrâneas. Por mais que D. Francisco de Almeida tivesse mandado os meirinhos prender os matalotes e soldados que dormiam com as mulheres da terra, não houvera penas nem castigos que os dissuadissem de ter conversação com elas.
Afonso de Albuquerque pusera freio àquela desvergonha, ao promover o casamento das gentias e mouras cativas, tornadas cristãs, com os portugueses que desejassem ficar na Índia, dando às noivas um dote e aos noivos terras e ofícios, a fim de terem filhos e criarem raízes nas terras conquistadas. Uma medida que escandalizara os fidalgos e a gente principal da Índia e do reino.
Quando o governador partira à conquista de Goa, António intrigara com os capitães para lhe danar a empresa e não lhe enviara as naus e homens de reforço que ele pedira; também não fizera as obras na fortaleza como lhe ordenara e usara esses materiais em seu próprio proveito. De regresso a Cochim, Albuquerque punira-o com dureza, multando-o e cortando-lhe um ano de soldo, porém, como el-rei D. Manuel o protegia e lhe dava poderes, crendo nas coisas que ele e o feitor lhe escreviam, António continuava a opor-se-lhe em tudo o que podia.
Iria lembrava-se de como eles também tinham festejado a sua morte, quando umas bruxas gentias lhes asseguraram que a armada fora destroçada e o governador morto com todos os seus capitães, durante o assalto a Malaca. Em vez de missa, requiem e procissão pela salvação da sua alma, apressaram-se a saquear e derrubar as casas onde morava, queimando-lhe uma nau em que tinha toda a sua fazenda.
Após a conquista de Goa e de Malaca, com a fuga e morte dos mouros, ficaram muitas mulheres. O governador anunciou que daria os palmares e as herdades abandonadas aos portugueses que se casassem com as mouras e as canarins que se fizessem cristãs, às quais concederia um dote de dezoito mil reais para ajuda da casa. Os que nada tinham de seu, nem no reino nem na Índia, aceitaram a oferta com tamanho alvoroço que o Terríbil não tivera mãos a medir com os pedidos.
Ainda nessa manhã, depois da missa, no largo da igreja onde se juntava a melhor gente de Cochim, António e o seu bando tinham achincalhado uma vez mais Afonso de Albuquerque a esse propósito.
– Os casamentos foram celebrados nas casas do governador e, como os noivos eram sem conto, os ofícios fizeram-se aos magotes, dia e noite. Ora ouvi esta cousa de pasmar: uma noite em que Afonso de Albuquerque presidia ao casório de um bando de doze ou mais casais, os parentes das noivas eram tantos que as tochas não chegavam para alumiar os noivos e acompanhantes no regresso a casa, pelo que os cortejos se misturaram e confundiram de tal modo que os maridos perderam as esposas no meio da multidão. E como a escuridão não os deixava ver o que buscavam, na confusão trocaram as mulheres e só viram o erro da troca na manhã do dia seguinte. – E António concluíra o seu relato, com muitas gargalhadas, limpando os olhos das lágrimas de gozo, no que era acompanhado pelos oficiais seus amigos: – Então, desfizeram o enleio, tomando cada um a que recebera por mulher, ficando o negócio da honra tal por tal!
– E agora quer que façamos o mesmo em Cochim, com este registo – acrescentara o escrivão da fortaleza, desdobrando um papel de timbre oficial e lendo em voz alta:
Per este me praz e hei por bem em nome d’elRei nosso senhor fazer mercê a Nuno Freire e a Filipa d’Albuquerque, sua mulher, em dote e em casamento, de uma horta com seu chão e assento em que faça umas casas, do qual pagará o dízimo a Deus quando for ordenado, e pera sua guarda e lembrança de quem isto houver de ver lhe mandei passar este assinado de minha mão, e será este registado no livro da câmara desta cidade.
– Vede como ele dá o seu próprio nome a estas cristãs-novas e chama genros aos maridos e filhas às esposas! – insistira António, por entre o coro de gargalhadas dos mofadores. – Diz que são casados pelo mandamento de Afonso de Albuquerque! Onde já se viu outra tal doudice num governador do reino?
Iria mantinha-se apartada do grupo dos homens, segurando o filho pela mão e tendo a seu lado Zobeida e Giauhare, que ela fizera baptizar, no mesmo dia que Diogo, com os nomes de Joana e Isabel. Naquele momento, e como sempre que apareciam na igreja ou no mercado, as moças eram o centro da atenção de todos os homens. De gentil porte e honesto parecer, muito belas e tão alvas como ela, em nada se pareciam com as cativas impúberes, tímidas e assustadas que António furtara em Mombaça. Viu os olhares cobiçosos que os companheiros do seu homem lançavam às moças e ouviu Lourenço Moreno dizer em tom brejeiro:
– Guarda bem aquelas tuas formosas bichas39, não vá ele tomar-tas! São pra teu uso ou vais pô-las no mercado? Se o fizeres, eu quero participar na almoeda40.
António olhara na sua direcção e, como quem queria ser ouvido por ela, respondera, alteando a voz para se sobrepor aos risos da companhia:
– Aquelas bichas não são para venda, são do serviço da Iria e do filho.
Manuel Paçanha retomara o assunto dos casamentos:
– Amigar-se com escravas e gentias é cousa natural e necessária à nossa gente, um amparo para quem vive fora de Portugal, anos a fio, apartado da família e em constante perigo de vida; porém, casar-se na igreja e com a bênção do Estado com essas bichas, ainda que alvas e gentis, e ter delas filhos lídimos é um destempero, um desvario que na verdade só lembraria a esse doudo.
– Sabeis a razão que ele dá para tamanho desatino? – perguntara o feitor Diogo Pereira, um dos mais venenosos mexeriqueiros de Cochim. – Diz que quer arrancar as cepas da má casta dos mouros de Goa para plantar novas cepas católicas, que com pregação e armas conquistem todo o Oriente!
– Nunca os portugueses poderão defender e sustentar Goa, sem nela despenderem todos os recursos da Índia – acudira Mendonça. – Hidalcão41, que é o maior e mais valente príncipe mouro destas terras, há-de tê-la sempre cercada, pelo que, para se não perder, as nossas armadas estarão empregues apenas na sua defensão, sem poderem atender a outros serviços de muito maior sustância.
– Razão tinha D. Francisco de Almeida, que Deus guarde em sua santa glória, para não lhe entregar a Índia, temendo que ele a deitasse a perder, como na verdade o faz – concluíra Real, sem esconder a satisfação que aquela prática lhe causara.
Iria ficara com o coração apertado de angústia, ao ouvir os doestos de Lourenço Moreno sobre as moças e fizera um tremendo esforço para engolir as lágrimas, de receio pela sua sorte. Nos últimos tempos tornara-se evidente a mudança de António no trato com Joana e Isabel, sobretudo no modo como as olhava, nos mimos que lhes fazia e elas recebiam constrangidas.
Afonso de Albuquerque mostrava-se tão bom e generoso para com as cativas cristãs que as suas amigas naturais de Cochim, assim como os criados e as escravas, os tendeiros, os mercadores, mais os artesãos e obreiras de todos os mesteres, não falavam de outra coisa senão desses casamentos. Apenas as nobres brâmanes e naires, devido aos seus grandes escrúpulos religiosos e por só lhes ser permitido casar dentro das suas castas, os repudiavam como uma infâmia que as desonraria. Muitos outros gentios, em particular as gentes de Goa e Malaca, sentiam-se felizes em oferecer as filhas aos portugueses, vendo como o governador as honrava, casando-as em sua casa, dando-lhes dotes em terras, fazendas, dinheiro e jóias que elas antes não possuíam, passando os seus parentes a gozar de uma vida segura e com privilégios que mais ninguém tinha na terra.