Aos portugueses bisonhos, degredados, sem eira nem beira, dos primeiros tempos, sucederam outros noivos de melhor e mais limpa geração, até já não se estranhar a alguns nobres e fidalgos o casamento com donzelas gentias da mesma condição ou mesmo de maior nobreza e riqueza. A razão disto fora a esperteza do governador que, por sua vez, jogara uma boa cartada contra os seus difamadores, ao escolher os melhores homens casados para vereadores, almotacéis, juízes, alcaides e demais ofícios da governação de Goa, cargos que eram sempre cobiçados e muito rogados por todos os que vinham para a Índia.
No auge dessa guerra, Iria foi apanhada entre dois fogos, e obrigada a uma escolha que mudaria, uma vez mais, o rumo da sua vida.
– Para duas malgas de azeite poreis a mesma quantidade de açúcar peneirado, meia malga de vinho branco e outra meia d’aguardente, dois ovos inteiros e três malgas de farinha com uma pitada de sal e uma colher de canela.
– Vinho e aguardente em biscoutos, madrinha?! – admirou-se Joana.
– Vamos ficar bêbadas! – riu-se Isabel, a mais moça e azougada das duas.
– Por isso, os biscoutos se chamam borrachões. A minha mãe fazia-os muitas vezes por serem os preferidos do meu pai – contou Iria, sentindo um aperto de saudade, mas logo dominou a emoção, acrescentando: – O vosso padrinho trouxe-nos esta saca de farinha de trigo, que cá se não cultiva, recomendando-me que só a usasse para fazer o pãozinho branco de que sente muito a falta.
– E se o senhor António se enfada e nos pune por furto? – perguntou Isabel assustada.
– Em provando os biscoutos, o vosso padrinho há-de perdoar-me o roubo – sossegou-as Iria. – E o mesmo se passará quando os fizerdes a vossos maridos, para que vos tenham mais amor.
Olhou-as com carinho, ouvindo-as rir, a disfarçar o rubor pela alusão ao casamento. Eram suas afilhadas, criara-as com amor de mãe e elas pagavam-lhe na mesma moeda, dedicando-se também de alma e coração ao pequeno Diogo, a quem mimavam como a um irmão mais novo; só com António guardavam uma reserva muito semelhante a medo ou ressentimento.
– Peneira a farinha para a bacia, com a joeira de seda, Joana, e faz-lhe uma presa no meio.
A moça obedeceu e Iria admirou os gestos delicados e precisos com que ela cumpria todas as tarefas. Rogara muitas vezes a António que lhes desse a alforria, porém ele respondera-lhe sempre que, em devido tempo, haveria de o fazer. Esse tempo era chegado e ela já não podia adiar aquela situação. Joana e Isabel estavam em idade de casar e eram pretendidas por dois sobrinhos do mercador Surendra Advani, um gentio rico, de boa casta e muito influente na terra, que tinha tratos com a fortaleza.
Elas conheciam-nos, tinham-se enamorado deles e Iria dera-lhes a sua bênção, contente por as moças ficarem assim protegidas da cobiça e dos abusos dos companheiros de António que lhe rondavam a casa como lobos famintos prontos a saltarem sobre as ovelhas indefesas. Passariam a fazer parte dos casados de Afonso de Albuquerque, usufruindo dos dotes e privilégios que ele lhes concedia, negócio muito do agrado de Advani, que fizera a proposta a António, assegurando-lhe que os moços estavam decididos a fazerem-se cristãos para se poderem casar com as suas afilhadas.
– Agora botai-lhe dentro o açúcar bem peneirado e o resto dos adubos com o acrescento desfeito numa pouca d’água – ordenou, quando Joana acabou de peneirar a farinha e Isabel escavou um buraco no topo do monte de pó branco.
Isabel mediu o açúcar e vazou-o na presa de farinha, alargando a cova, de modo a receber os ingredientes líquidos que Joana deitava com cuidado. As moças, além de modestas e gentis, eram muito prendadas, em nada ficando atrás das parentas que Iria deixara no reino, pois haviam aprendido a nova religião e olvidado quase por completo o seu passado de mouras. Sabiam bordar, cozinhar e, apesar do escárnio de António e do escândalo do vigário, tinham aprendido a ler e a escrever, junto com Diogo, coisa rara naquele lugar, mesmo entre os homens.
– Adi um par de ovos para os borrachões ficarem mais douradinhos – recomendou. Isabel apressou-se a obedecer. – Agora misturai tudo e sovai a massa muito bem, como se faz ao pão, até se poder tender com o canudo42.
As moças lançaram-se ao trabalho, com grande alvoroço, amassando a mistura a quatro mãos, com frouxos de riso e momices, quando a massa pegadiça se colava aos dedos ou a farinha saltava pelo ar num sobressalto de poeira. Em casa, sobretudo quando fazia muito calor e trabalhavam na cozinha, vestiam-se como as gentias com panos brancos, leves e transparentes, que revelavam mais do que a modéstia permitia, as cores e formas dos corpos que cobriam. Essa liberdade de que gozavam as malabares era uma das coisas que Iria mais amava naquele mundo, apesar de sentir desassossego, ao seguir com os olhos os movimentos das suas protegidas, graciosas como jovens palmeiras ondulando ao sabor da brisa, sem se aperceberem do perigo que corriam.
Como receava, António não mostrara contentamento pela proposta do mercador, apesar de ser uma boa aliança para favorecer os negócios que ele fazia em proveito próprio e prejuízo da Fazenda Real. Embora sem a recusar, mostrara-se evasivo, dizendo que as moças eram cativas de guerra e, além disso, muito novas para casar, porém, a sós com Iria, dera vazão à sua raiva e saíra porta fora vociferando, era só o que me faltava, dar pérolas a porcos, para mais favorecendo ao doudo do governador. Passara aquele dia ocupado com as obras das casas que mandara fazer à revelia de Afonso de Albuquerque, as quais já por mais de uma vez tinham sido o pomo da discórdia e do confronto entre ambos.
Iria percebera que ele queria ir morar para lá com as suas cativas e que na nova casa não haveria lugar para ela. Por fortuna, ao volver vitorioso de Malaca em Julho desse mesmo ano, o governador, furioso com os abusos de António, tomara-lhe as casas para nelas fazer o hospital dos soldados e ela respirara de alívio, mas redobrara de vigilância, nunca deixando as moças fora da sua vista, para assim desencorajar qualquer tentativa de furto ou violação pelos que lhes punham cerco.
António deixara de a procurar como mulher, preferindo fornicar com as escravas da fortaleza, passando muitas noites fora de casa. Iria já não duvidava das suas intenções para com Joana e Isabel, todo aceso de desejo e de ciúmes pela cobiça dos seus companheiros de chacotada, que o acirravam com propostas para a compra ou apenas o usufruto das moças. Jamais lhes daria a alforria e a única pessoa que o poderia fazer em vez dele era Afonso de Albuquerque.
Decidida a agir, antes de ser demasiado tarde, depois de falar com Surendra Advani, que lhe assegurara a sua amizade, protecção e ajuda para levar a cabo aquela empresa, Iria escrevera uma carta ao governador, rogando-lhe a mercê de conceder a alforria às suas afilhadas – criadas por ela no amor de Cristo, porém cativas do seu pior inimigo – e apadrinhar-lhes o casamento com aqueles moços cristãos da terra, livrando-as do mal que as esperava.
– Benzei a massa como haveis feito à do pão e deixai-a pousar um pouco – ordenou, com a voz embargada.
Fizeram o sinal da cruz sobre a bola de massa que repousava no alguidar, murmurando em uníssono:
– Pão de Deus,/ Pão de S. Vicente,/ Deus te acrescente/ e dê pão pra muita gente.
– Untai os tabuleiros com azeite, que o forno já está quente. Daqui a pouco já podeis tender a massa e cortá-la em pedaços do tamanho e grossura de um dedo. Não vos olvideis de os picar com um espeto para não fazerem bolhas. Isabel.