Выбрать главу

Calou-se ao ver o ar assustado das afilhadas e virou a cabeça. Junto da porta, meio encoberto pelas sombras, achava-se António, de rosto vermelho, como afrontado, a olhá-las fixamente e Iria sentiu o coração gelar, não de ciúme, porque já não o amava, mas de dor e medo pela sorte das duas moças. Vendo-se descoberto, António retirou-se, sem dizer palavra, e saiu de casa.

Iria apressou-as a terminar os biscoitos e, enquanto metiam e tiravam os tabuleiros do forno, começou a prepará-las para a aventura em que se jogaria o seu futuro, senão a vida. Teria de agir, nessa mesma noite, conforme havia concertado com Advani e os sobrinhos Akhil e Rajiv, quando recebera as cartas de alforria das moças, entregues em segredo na sua mão, por um criado fiel do governador. Fora previdente em tratar com antecedência de tudo o que necessitava para pôr em prática o ardil que afastaria António do seu caminho, faltando-lhe apenas enviar recado ao tio dos noivos, que lhes asseguraria a assistência de D. Afonso de Albuquerque.

António chegara a casa ao anoitecer, depois de umas horas passadas a beber com o seu bando e a ouvir-lhe os doestos. Desta vez custara-lhe mais sofrer a chacota e as perguntas sobre as bichas, em que idade as desflorara e como lograva fodê-las, com Iria sempre a vigiá-las como um dragão. Jamais lhes diria que não chegara sequer a prová-las e a custo inventara umas bazófias de bordel para os contentar e salvar a face. Trazia gravada na alma, a ferro quente, a imagem das duas moças reclinadas na mesa da cozinha, dos seus formosos corpos, cujas formas a luz desenhava na transparência dos panos, excitando-lhe os sentidos. Há muito que as desejava em ânsias, bastava vê-las para sentir as veias em fogo e só a presença de Iria o impedira de tomar posse daquilo que era seu por direito, conquistado com a sua lança, como uma promessa de futuro prazer e lucro.

Nessa noite colheria o prémio há muito desejado, nem que para isso tivesse de expulsar de casa Iria e o seu rebento, que ele nunca haveria de perfilhar, para não empecer as suas legítimas aspirações a casar com viúva rica ou donzela fidalga e de bom dote, quando volvesse ao reino. O medo ou asco que causava às cativas, em vez de o desencorajar, mais lhe acirrava o desejo e, ao vê-las com a madrinha à sua espera, para lhe servirem a ceia, saboreou com antecipação o momento em que tomaria a cada uma a flor da sua virgindade, com a violência e a dor de um estupro, para que as bichas, mimadas por Iria, conhecessem o seu verdadeiro lugar e soubessem quem era o seu dono. Seriam as suas escravas de prazer durante o resto do tempo de serviço em Cochim, para usar e abusar até se saciar delas e, antes de partir para o reino, trataria de as vender pelo melhor preço aos que agora lhas requeriam.

Comeu com apetite a ceia que elas lhe serviam com muito acatamento e boa cara, embora estranhasse não ver por perto qualquer outra moça ou escravo. Joana e Isabel estavam, tal como Iria, vestidas ao modo de Portugal em vez dos panos transparentes que, de manhã, lhe tinham posto o sexo intumescido como o de um garanhão em cio à vista das éguas.

Desnudá-las, arrancando-lhes ou fazendo-as despir, uma a uma, as peças de roupa, poderia ser um jogo assaz estimulante e, só de imaginá-lo, sentiu que se lhe entesava a verga, o que lhe deu umas ganas irresistíveis de rir. A comida sabia-lhe bem e, embora procurasse beber com alguma moderação, porque a noite prometia ser longa e trabalhosa, as endemoninhadas moças, como se lhe adivinhassem os desejos, enchiam-lhe sem cessar o pichel de vinho. Soltou uma sonora risada e o sobressalto que causou às três mulheres provocou-lhe novas gargalhadas.

Sentia-se leve e feliz, sensações há muito esquecidas que a antecipação do prazer aguçara, despertando-lhe o riso. Gracejou com elas, riu-se das suas brejeirices e do rubor das moças, contente por Iria sorrir em vez de lhe ralhar pelo destempero. Não conseguia parar de gargalhar como um doido, o som do seu riso embalava-o, causando-lhe uma indesejada sonolência. Com os olhos a cerrarem-se, apesar dos esforços para os manter abertos, riu-se ainda mais quando Iria e as afilhadas o tomaram em braços e o arrastaram para o leito, enquanto ele as apalpava à toa, incapaz de dizer a quem pertencia a mama ou a nádega que beliscava, rindo sempre até perder a consciência.

– Bendita datura43! – exclamou Iria em surdina, suspirando de alívio, quando o viu deitado no leito. – O pó das suas sementes surtiu o efeito que Advani me descreveu.

– Não haverá perigo? – perguntou Joana assustada, apesar da respiração compassada e dos sonoros roncos, indicadores de um sono profundo.

– Pusemos a erva na comida e no vinho – sussurrou Isabel.

Iria apressou-se a sossegá-las:

– Juraram-me que esta erva apenas causa riso e um sono tão pesado que os que a tomam quando acordam não se lembram de nada do que se passou antes. Eu já tinha ouvido falar dela às nossas amigas gentias, porque as casadas de cá usam-na muito. – Acabou de ajeitar a cama e acrescentou: – Deixemo-lo dormir sossegadinho. Ide buscar os vossos pertences e despertar Diogo, porque os nossos salvadores não tardam aí para nos resgatar.

Tinham preparado a fuga durante a ausência de António, embora em contínuo sobressalto no temor de serem surpreendidas a qualquer momento por uma das suas entradas intempestivas que deitaria tudo a perder. De afastar os escravos se encarregara Mandeep, uma matrona gentia que Surendra Advani pusera a seu serviço e ela apresentara a António como necessária para as acompanhar e guardar nas suas saídas.

Iria pensou no mercador, nos riscos que corria ao ajudá-las e o seu coração encheu-se de gratidão. Ou de um outro sentimento que ela não ousava admitir, mas que a fazia ruborizar-se na sua presença, como uma donzela inocente, quando os seus olhos pousavam nela cheios de doçura. Tinham falado algumas vezes, sem ajuda dos intérpretes, porque tanto ela como as moças dominavam bem a língua corrente do Malabar. Surendra era pouco mais velho do que António e, tendo perdido a esposa havia cinco anos, não voltara a casar.

Tinham acabado de vestir os trajos masculinos que Iria tirara de uma arca, quando Mandeep veio avisá-las de que os seus salvadores as esperavam. Cobriram os cabelos com chapéus e gorras, agarraram nos emburilhos com o fato e disseram a Diogo que iam folgar numa chacotada, como ele podia ver pelos seus disfarces, mas às escondidas e sem ruído, a fim de não serem descobertos e tomados pelos bandos rivais.

Abandonaram a casa sem pena nem saudade. A noite sem lua oferecia alguma protecção e Iria só os viu quando Mandeep lhe assinalou o lugar onde se escondiam. Sentiu uma onda de calor a humedecê-la, quando reconheceu Surendra com os sobrinhos, que traziam dois soldados armados, enviados como reforço por Albuquerque. As casas do governador, onde teriam pousada e protecção, ficavam do outro lado da fortaleza.

– Correis grande risco – disse-lhe Iria, em voz baixa, ao modo de saudação. – António Real é muito rancoroso e vingativo.

– Tinha de vir com eles – disse-lhe o malabar com a voz quente e terna como uma carícia que lhe punha um formigueiro no corpo. – Não estaria sossegado em casa sabendo-vos em perigo.

– Partamos, sem demora – comandou um dos soldados, impaciente com as saudações trocadas entre os noivos. – As moças ainda não estão a salvo.

Puseram-se a caminho, sem se esconderem demasiado para não dar azo a suspeitas de malfeitoria; se os vissem passar assim em grupo, tomá-los-iam por um bando de amigos que saíam da casa de alguém, depois de uma boa ceia.

Surendra seguia ao lado de Iria e ela sentia-se segura na sua companhia.

– O casamento terá lugar amanhã de manhã na capela – informou o mercador –, em presença do senhor governador que servirá de testemunha. Será celebrado pelo seu capelão, pois D. Afonso de Albuquerque não confia no vigário.

Tinha razão em desconfiar de Diogo Pereira, que se pusera da parte de António, para contrariar os desígnios do governador. Chegaram a salvo ao seu novo porto de abrigo e Iria sorriu de alívio: com a protecção de Albuquerque e da sua nova família, as moças estariam finalmente a salvo dos predadores.