– São turcos – grita o bombardeiro – da Armada do Mar Roxo, comandada pelo capado Soleimão Baxá, que vieram ajudar os exércitos de Coja Çofar e d’el-rei de Cambaia. Ao todo, mais de vinte e cinco mil homens contra os nossos oitocentos, dos quais a maioria já está morta ou ferida, não havendo agora oitenta homens capazes de pegar em armas. Capitão, tendes de ir a Goa dar aviso ao vizo-rei. Se ele não vier já em socorro de Diu, perderá a fortaleza com a gente que a defende. No assalto ao baluarte, os fideputas deram-me por morto, mas o pelouro só me feriu e eu logrei fugir durante a noute. Como já não podia passar para a fortaleza, roubei este esquife a ver se apanhava algum catur45 dos nossos, que por vezes vêm espiar.
As galés avançam direitas à nau, que não é adversário para tamanho poder, e Jorge Fernandes manda logo desferir a vela grande para fazer a volta do mar:
– Rumo a Chaul, que o vento começou de se levantar. Fazei prestes e roguemos a Deus para que estas malditas não nos cacem.
A perseguição foi encarniçada e durou até ao anoitecer, estando a nau algumas vezes ao alcance das bombardas turcas e em grande perigo; por fim, com a mudança do vento, as galés desistiram e voltaram para Diu. Um coro de vivas, aplausos e barretes lançados ao ar saudaram o capitão e os hábeis matalotes a quem deviam a vida.
– Ufa! Vinham açulados que nem cinco cães a um osso.
– Safámo-nos desta vez, Deus seja louvado!
Ajoelhados na coberta, tripulantes e passageiros agradecem aos céus a sua salvação, rezando em coro um Padre-nosso e uma Salve-rainha. Dispersam-se em seguida para irem comer uma ceia que, embora parca, parece a todos um manjar de príncipe, por terem passado o dia em jejum, a medir com o olhar aflito a distância das galés perseguidoras, enquanto prestavam ajuda aos matalotes nas suas tarefas, rezando a todos os santos da sua devoção para os livrarem dos inimigos.
Nessa noite toda a gente, excepto os oficiais e matalotes de serviço, se há-de sentar na coberta para ouvir as notícias de Diu, que o bombardeiro Tristão Gomes se prestara a dar-lhes. Durante a perseguição dos rumes, Bento Castanho tomara o fugitivo resgatado a seu cargo e Fernão, embora se tivesse lembrado de como o conhecera no passado ano, nessa mesma fortaleza, estivera todo o dia ocupado nas lides das velas e cordoalha, sempre com o credo na boca, a imaginar-se outra vez cativo dos mouros, sem tempo sequer para se coçar, quanto mais para conversar.
Nas navegações que fizera até esse dia, nunca perdera as tertúlias de desenfadamento, que eram a melhor escola de vida para quem queria vencer na Índia, por nelas se ouvirem quer histórias de gentes e lugares quer as últimas novidades (por vezes velhas já de meses) ou ainda a leitura de algum livro de viagens sobre as Ilhas Afortunadas. Nessa noite, em particular, anseia pelo serão, para saber o que aconteceu aos seus companheiros da Frol de la Mar, com quem viera do reino para a Índia e que tinham ficado de serviço à fortaleza.
Gostara muito de António da Silveira, o capitão que os recebera assaz contente pelo reforço de gente de armas, gastando largamente da sua fazenda a dar de comer a mais de setecentos homens, a quem pagava, além dos mantimentos, soldos em dinheiro com outras mercês e esmolas. Por estas razões quase todos os que vieram nas três naus d’el-rei – Frol de la Mar, Santa Bárbara e Galega – se quedaram com ele de sua própria vontade, apesar da suspeita de cerco dos rumes. Sentira-se tentado a fazer o mesmo, mas, na mira de enriquecer depressa, acabara por embarcar na fusta Silveira, enviada em missão de espionagem ao mar Roxo, que o lançara na escravatura e quase lhe custara a vida.
As três naus haviam ido para Goa, apenas com os seus oficiais e a gente do mar e depois de carregadas partiram para o reino com a São Pedro, feita na Índia, que levava a el-rei o Tiro de Diu, o célebre basilisco46 que o Rumecão47, capitão-mor da armada do turco, trouxera com outros quinze do Suez, no ano de mil quinhentos e trinta e quatro, para ajudar o sultão Bahadur contra os portugueses. O nome de Bahadur parecia persegui-lo desde o dia em que desembarcara na Índia. Ainda chegara a perguntar a Bento Castanho se sabia como fora morto o sultão, pois havia muitas histórias a circular e todas se contradiziam. Respondera-lhe que presenciara a sua morte e a contaria, nessa noite, se o assunto viesse à baila, embora não gostasse de falar de tal sucesso, por ser uma história pouco abonadora da honra e palavra dos portugueses.
– Como Bahadur era muito traiçoeiro e fementido, o governador Nuno da Cunha não honrou o contrato assinado entre ambos – desabafara em voz baixa –, permitindo que os nossos o matassem durante uma visita que ele fez à sua nau! Desse ruim modo pagou as grandes mercês que el-rei lhe fez ao dar-lhe lugar para construir as fortalezas de Diu e Baçaim, em troca de quase nada, pois só pôde contar com a ajuda de Martim Afonso de Sousa e dos seus quinhentos portugueses, para defender o reino dos inimigos. Assi ganhamos ódio e má fama na Índia! – concluíra, afastando-se cabisbaixo.
Nessa noite nem o capitão falta ao serão e até os matalotes de serviço procuram poiso que lhes permita ouvir o que tem para contar o bombardeiro, natural de Sesimbra, que sobrevivera a um assalto dos turcos.
– No dia quatro de Setembro passado, na fortaleza, todos sentimos como certa a morte, ao ver chegar a armada dos rumes, de mais de setenta navios muito bem armados de basiliscos e outras bombardas, com muitas máquinas de guerra e um exército de gente escolhida que tanto serve nos barcos como combate em terra. Por sorte, estávamos preparados para os receber, porque eu tinha chegado duas semanas antes e dera ao capitão António da Silveira a certeza da sua vinda, do número de navios e de gente que ele trazia.
– Como o soube vossa mercê?
– Eu estava no Cairo, cativo do cossairo Barbaroxa, quando ouviu dizer que Bahadur enviara a sua esposa favorita a Constantinopla, com um grande presente de ouro e jóias para o grão-turco48, a pedir ajuda contra os portugueses que lhe queriam tomar o reino; após ela, chegou um embaixador do novo sultão Mahmud a requerer o envio do socorro prometido, desta vez para vingar a morte de Bahadur e expulsar-nos da Índia. Soleimão, o Magnífico, como lhe chama a sua gente que o venera, determinou mandar à Índia a sua poderosa Armada do Mar Roxo sob o comando de Soleimão Baxá, em cuja galé eu ia como remeiro. Durante a tomada de Adem pelo capado, fugi para Baçorá, de onde passei a Diu e avisei o capitão.
– Como é esse Soleimão Baxá?
– O governador do Cairo tem setenta anos e é um janízaro natural de Moreia, feito eunuco para servir de criado e porteiro da câmara do sultão Cahalí, pai do presente grão-turco. É curto de estatura e tão gordo que parece ter menos de latitude que de longitude, com uma imensa papada que lhe cai sobre os peitos e uma pança que não o deixa ver os pés; quando se assenta, só se pode alevantar com ajuda de quatro pajens. – Deixou serenar os risos e prosseguiu: – É muito cobiçoso de glória e de dinheiro, fez mil tiranias aos moradores do Cairo e de outros lugares para prover a sua armada de todo o necessário. Em Adem entrou à traição, fingindo ter muitos doentes para tratamento, mas metendo na cidade cerca de quinhentos dos seus melhores soldados com as armas escondidas, para que, ao seu sinal, assaltassem as casas d’el-rei que os acolhera e que ele enforcou na sua nau depois de tomar a cidade. É cruel, fementido e ladrão, como nenhum outro. Depois de ordenar o saque de Adem, pôs-se a uma das portas a fazer busca a todos os homens que iam para as naus carregados com o roubo e tomou-lhes o dinheiro, jóias e quaisquer outras cousas de valor, deixando-lhes apenas o fato!
Um murmúrio percorreu a assistência, num arrepio de medo. Estaria reservado a Diu o triste destino de Adem, a cidade tão cobiçada por Afonso de Albuquerque que, por mais de uma vez, tentara ingloriamente conquistá-la?