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- Andar, muiti eramá para esse inferno, onde a vossa enfuscada alma agora estará gozando dos deleites de Mafamede, como ontem com grandes brados pregáveis a essoutros cães tais como vós.

E fazendo logo vir perante si todos os escravos, cativos, tanto sãos como feridos, que trazia em sua companhia, mandou também chamar os senhores deles, e a todos lhes fez uma fala de homem bom cristão, como na verdade o era, em que lhes pediu que pelo amor de Deus tivessem todos por bem lhes darem liberdade, da maneira que ele lhes tinha prometido antes da peleja, porque ele de sua fazenda lhes satisfaria muito à sua vontade; ao que todos responderam que pois sua mercê assim o havia por bem,

eles eram muito contentes, e os haviam como forros e livres daquele dia para sempre. E disto se fez logo um assento, em que todos assinaram, porque por então se não pôde fazer mais, e depois em Liampó lhes deram a todos suas cartas de alforria. Após isto, se fez inventário da fazenda que Iiquidamente se achou, tirando a que se deu aos portugueses e foi avaliada em cento e trinta mil taéis em prata do Japão e fazendas limpas, como foram cetins, damascos, seda, retrós, tafetás, almíscar e porcelanas de barça muito finas, porque então se não fez mais receita do mais que este corsário tinha roubado por toda aquela costa de Sumbor até ao Fuchéu, onde havia passante de um ano que continuava.

Como António de Faria 6e partiu de6te rio Tintau para Liampó, e de um de6venturado 6uceHO que teve na viagem

Depois de haver já vinte e quatro dias que António de Faria estava neste rio de Tinlau, dentro dos quais os feridos todos convalesceram, se partiu para Liampó onde levava determinado invernar, para daí na entrada do Verão cometer a viagem das minas de Ouãogeparu, como tinha assentado com o Ouiay Panjão que levava em sua companhia.

E estando tanto avante como a ponta de Micuy, que está em altura de vinte e seis graus, lhe deu um rijo contraste de noroeste, pelo que, por conselho dos pilotos pairou à trinca, para não perder o caminho que tinha andado; este tempo carregou sobre a tarde, com chuveiros e mares tão grossos que as duas lanteas de remo, por o não poderem sofrer, se fizeram já quase noite na volta da terra, com o propósito de se meterem no rio de Xilendau que estava dali a uma légua e meia. António de Faria, também temendo que lhe acontecesse algum desastre, se afastou o mais depressa que pôde, e marcando-se pela sua esteira as foi seguindo com cerca de cinco ou seis palmos de vela somente, tanto para as não escorrer, como por ser o ímpeto do vento tão rijo que não era possível apará-lo. E como a cerração da noite era muito grande, e o escarcéu rebentava todo em flor, não enxergou o baixo que estava entre o ilhéu e a ponta do recife, e varando por cima dele deu tamanha pancada que a sobrequilha lhe rebentou logo por quatro lugares, com parte do couce da quilha debaixo; e querendo então o seu condestável dar fogo a um falcão para que os outros juncos lhes acudissem naquele trabalho, ele o não quis consentir, dizendo que já que Nosso Senhor era servido de eles ali acabarem, não queria nem era razão que também os outros por sua causa ali se perdessem, mas que pedia e rogava a todos que o ajudassem, a trabalharem em público com as mãos e em secreto pedirem a Deus perdão dos seus

pecados, e graça para emendarem a vida, porque se assim o fizessem de todo o seu coração, ele lhes dizia que muito cedo se veriam a salvo e livres, daquele trabalho. E com isto, arremetendo ao mastro grande, o fez cortar junto dos tamboretes da segunda coberta, e em este caindo ficou o junco algum tanto quieto, ainda que a sua queda custasse a vida de três marinheiros e de um moço nosso, porque ao cair os colheu debaixo e os fez em pedaços; e após este, mandou também cortar todos os outros mastros de popa e de proa, e arrasar todas as obras dos gasalhados, de modo que tudo foi fora até à primeira coberta, e conquanto estas coisas se fizessem com grande presteza, quase que nada nos aproveitava, por ser o tempo tamanho, o mar tão grosso, a noite tão escura, o escarcéu tão alto, o cheiro tão forte, e o ímpeto do vento tão incomportável e de refregas tão furiosas que não havia homem que as pudesse esperar com o rosto direito. Neste mesmo tempo os outros quatro juncos fizeram também sinal de como se perdiam, ao que António de Faria, pondo os olhos no céu e apertando as mãos, disse alto, que todos o ouviram:

- Senhor Jesus Cristo, assim como tu meu Deus, por tua

misericórdia tomaste sobre ti satisfazer na Cruz pelos pecadores, assim te peço por quem és, que permitas por castigo da tua divina justiça que eu só pague as ofensas que estes homens te fizeram, pois eu fui a principal causa de eles pecarem contra a tua divina bondade, porque senão, vejam nesta triste noite a maneira em que eu por meus pecados agora me vejo, pelo que, Senhor, te peço com dor da minha alma, em nome de todos, ainda que não seja digno de me ouvires, que tires os olhos de mim e os ponhas em ti e no muito que te custámos todos por tua infinita misericórdia.

Após estas palavras, deram todos uma tamanha grita de

Senhor Deus, misericórdia”, que não havia homem que não pasmasse de dor e tristeza. E como o natural de todos os homens é, em tempos semelhantes, trabalharem para conservar a vida, se’m a lembrança de outra coisa nenhuma, era tamanho’ o desejo que todos tinham da salvação, que não procuravam mais do que os meios que para isso podiam ter, pelo que, esquecida de todo a cobiça, se tratou logo com toda a presteza de alijar a fazenda ao mar, e saltando em baixo no porão, cerca de cem homens, tanto portugueses como escravos e marinheiros, em menos de uma hora foi tudo lançado ao mar, de maneira que nenhuma coisa ficou a que se pudesse pôr nome, que pelos bordos não fosse fora, e foi tão excessivo o desatino destes homens que até de doze caixões cheios de barras de prata que na briga passada se haviam tomado a Coja Acém, nenhum ficou que também não fosse ao mar, sem haver homem de entre eles que tivesse acordo para se lembrar do que era, fora coisas de muita valia que junto com o mais foram por este triste caminho.

Do mai trabalho e perigo em que no vimo e do ocorro que tivemo

Passando assim toda aquela noite nus e descalços e escalavrados, e quase esbofados do grande trabalho que tínhamos levado, prouve a Nosso Senhor que quando a manhã começou a clarear, o vento foi sendo algum tanto menos, com o que o junco ficou mais quieto, ainda que já estivesse assentado sobre a ponta da coroa do baixo, e com treze palmos de água dentro, e os homens todos estivessem pegados em cordas da banda de fora, para que os mares grandes que quebravam em cima no costado os não afogassem ou lançassem sobre os penedos, como já tinham feito a dez ou doze que não se preveniram disto; e quando foi o dia bem claro, quis Nosso Senhor que nos enxergou o junco de Mem Taborda e António Anriquez, que toda a noite tinha pairado em árvore seca, com grandes jangadas de madeira à popa à charachina, que os seus oficiais lhe inventaram para poderem sustentar melhor o pairo, e como houve vista de nós nos veio logo demandar, e em chegando a nós nos arremessaram muita soma de paus atados a cordas, para que nos pegássemos neles, o que nós logo fizemos, e nisto se gastou quase uma hora com assaz de trabalho de todos, pelo desmancho e desordenada cobiça que cada um tinha de ser o primeiro que se salvasse, o que foi causa de se afogarem vinte e duas pessoas, de que cinco foram portugueses, que António de Faria mais sentiu que toda a perda do junco e da fazenda de prata, ainda que não fosse tão pequena que não passasse de cem mil taéis, só em fazenda de pl’ata, porque a maior parte das presas que se tomaram e do que se tomou ao Coja Acém se metera naquele junco em que andava António de Faria, por ser maior e melhor, e em que parecia que corria menos perigo que nas outras embarcações que não eram tão boas nem tão seguras.

Depois que com assaz de trabalho e risco de nossas vidas nos recolhemos ao junco de Mem Taborda, se gastou este dia todo em prantos e lamentações por este triste e desventurado sucesso, sem se saber parte da mais companhia; mas prouve a Nosso Senhor que sobre a tarde houvemos vista de dois barcos, que de um bordo ao outro faziam as voltas tão curtas, como que pairavam o tempo, por onde conhecemos que eram da nossa armada, e por ser quase noite não pareceu bem ir até elas, por algumas razões que para isso se deram, mas fazendo-lhes farol, nos responderam logo a nosso propósito, e sendo já meio quarto da lua passado, chegaram a nós e depois de fazerem suas salvas assaz tristemente, perguntaram pelo capitão