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– Sempre é verdade que o cerco de Diu e a guerra dos rumes são represálias pela morte do sultão Bahadur? – pergunta alguém.

– Sem dúvida – aquiesce Tristão Gomes. – O renegado italiano Coja Çofar, um dos moradores mais ricos de Diu e homem de confiança de Bahadur, foi ferido no ataque ao sultão e não perdoou ao governador Nuno da Cunha a conquista da sua cidade, sendo quem mais trabalha para nos perder. Devia tê-lo morto juntamente com o sultão, pois quem seu inimigo poupa, nas mãos lhe vem a cair! Foi a Ahmadabad, no sertão do reino de Guzarate, onde reside a corte e, com o aval da mãe de Bahadur e dos três regentes de Mahmud Sh-ah, o novo sultão de Cambaia que é ainda criança, criou um exército de dezanove mil homens de pé e de cavalo, comandados pelo regente Alucão, a que se vieram juntar os seis mil e quinhentos rumes da armada de Soleimão Baxá, para combaterem os oitocentos portugueses, dos quais só duzentos estavam bem armados!

– Virgem Maria! Como poderão resistir a um tal poder?

– Até há dias, defendemo-la com a ajuda de Deus e da grande coragem e saber de António da Silveira Meneses, o melhor capitão da Índia, que reforçou quanto pôde as nossas defesas! Coja Çofar deu o primeiro assalto ao baluarte da Vila dos Rumes, que lhe foi defendido por Francisco Pacheco com catorze homens, mais o troço do capitão que acudiu a socorrê-los. De seguida, os exércitos de Alucão acometeram os passos de Gonçalo Falcão, António Veiga e Francisco Gouveia, enquanto Çofar lançava a sua gente contra Lopo de Sousa Coutinho. E aqueles homens pelejaram com as tripas numa das mãos e a espada na outra! Mas, agora, já não deve haver mais do que oitenta homens capazes de tomarem armas, por isso, se não vier depressa o socorro da armada, não poderão resistir por muitos mais dias. Os baluartes da Vila dos Rumes e os da ilha foram tomados, e tivemos a pouca sorte de perder o grosso da nossa artilharia. Como só se pode chegar à fortaleza pelo lado do mar, não pude voltar para lá, depois do ataque à minha tranqueira– Por que razão mataram Bahadur? – pergunta o capitão Taborda, com um tom de censura na voz. – Mostrou ser nosso amigo, ao consentir que construíssemos no seu reino as fortalezas de Diu e Baçaim, com as suas vilas e cidades.

– Nessa história perdemos muito da nossa honra e boa fama na Índia – anui Bento Castanho, com amargura. – É motivo de vergonha para todos nós, embora houvesse boas razões para o governador e o capitão de Diu desejarem a morte do sultão.

– Contai-nos o que se passou, se o sabeis de fonte segura – roga Fernão, aproveitando a ocasião e a curiosidade dos presentes, para ouvir o que há muito buscava saber. – Assi entenderemos melhor o que está a acontecer na fortaleza.

Vendo que a assistência aprova o alvitre, Castanho troca um olhar com Tristão Gomes que lhe faz um gesto de assentimento.

– Eu estava ao serviço em Diu, nesse tempo, e tudo presenciei – confirma. – Como já aqui contei, depois que Martim Afonso de Sousa logrou permissão d’el-rei para fazer a fortaleza, o governador Nuno da Cunha deu pressa à sua construção, sobretudo a parte dos baluartes e demais fortificações, que acabámos em seis meses. Trabalhávamos como condenados, por sorte apenas sofremos pequenos acidentes e os feridos foram tratados pelo físico Garcia de Orta, trazido do reino pelo capitão-mor. De início, Bahadur visitava amiúde as obras e parecia encantado com tudo o que via, mas, quando reparou na grossa artilharia com que tínhamos armado a fortaleza, não ficou nada satisfeito, apesar de lhe ter sido dito que era para sua protecção e do reino.

Por ser homem de natural inconstante, traiçoeiro e cruel, julgava os outros por si, sendo por isso muito desconfiado, com medo de que o quisessem matar e tomar-lhe o trono, como ele fizera aos seus irmãos para ficar senhor de Cambaia. E, nesse preciso ano de trinta e seis, fartos de matar e saquear, os inimigos mogores retiraram-se para as suas terras com o rico espólio que tinham roubado, deixando-lhe o reino livre. Bahadur achou então que já não precisava da nossa ajuda e como cobiçava a fortaleza, determinou matar o governador com todos os portugueses a que pudesse lançar mão.

Nuno da Cunha soube logo da revolta de Bahadur pelo Acedecão49 que lhe mandou entregar em Goa um presente de vacas, carneiros, galinhas e manteiga e, no maior segredo, um anel com um olho-de-gato de muito preço e um recado que lhe escrevera de sua própria mão:

Foi-me dito que quereis ir depressa a Diu, pelo que vos mando este presente de refresco; mas eu vos rogo que andeis muito devagar e olheis por onde ides, que para isso vos mando um olho, por terdes dois e haverdes mister de três.

Assim prevenido, Nuno da Cunha enviou Diogo de Mesquita a Cambaia, onde estivera preso alguns anos e aprendera bem a língua, sendo muito estimado de Bahadur por lhe ter prestado bons serviços na guerra contra os mogores. Com o pretexto de informar o sultão da visita do governador, a sua verdadeira missão consistia em descobrir o que ele preparava contra os portugueses.

Mesquita soube pelos seus amigos de Cambaia que el-rei só falava em reconquistar a fortaleza de Diu e matar todos os cristãos. Um ódio confirmado pelo próprio Bahadur, a quem fizera desatar a língua com um vinho que lhe dera de presente.

Por ele soubemos das cartas que o sultão tinha escrito ao Nizamaluco50, ao Hidalcão e ao samorim de Calecut, seus aliados, queixando-se de que o havíamos enganado e lhe faltaram com o prometido socorro na guerra; na cidade, éramos mais nocivos que os mogores, porque roubávamos e matávamos os seus mercadores, ofendendo-o constantemente, pelo que determinava fazer-nos guerra sem tréguas, até nos acabar de todo. Rogava-lhes, em nome do profeta Mafamede, que fizessem o mesmo em todos os lugares onde os portugueses tivessem fortalezas.

44 O baluarte era uma obra defensiva, situada nas esquinas das muralhas e avançada em relação à estrutura principal de uma fortificação.

45 Muito parecido com o tone, é um pequeno barco a remos, como o bergantim, comprido, pontiagudo nos dois extremos, e fechado por cima, à vela ou com dez a vinte remos, que serve na pesca e na pirataria.

46 Grande canhão de bronze, construído em 1533 para o sultão Bahadur, e que hoje se pode ver no Museu Militar, em Lisboa.

47 Nome dado pelos portugueses a Mustafa Rumi Khan, o general turco comandante do exército do sultão Bahadur, desde 1527.

48 Soleimão I, o Magnífico, sultão otomano.

49 Asad Kha-n, dignitário de Adil Sha-h (Hidalcão), uma espécie de condestável do reino.

50 Buran Niz-am Mulk, sultão de Ahmadnagar.

Quando o gavião está seguro nas piós, quem o solta às vezes se arrepende

(português)

Canto I, de O Primeiro Cerco de Diu51

VII. Cambaia, reino grande e populoso,

Nas partes d’Oriente situado

Em riquezas e em armas poderoso,

Foi de sultão Bahadur senhoreado:

Príncipe mau, cruel, despiedoso,

Dos naturais e estranhos pouco amado,

Antes sempre em maior ódio crescia,

Cousa assaz natural na tirania.

XI. O sexo feminil, cuja fraqueza

Resiste mais que os duros peitos fortes,

Não pôde resistir a esta braveza,

Que se mantinha só de humanas mortes;

Pois também fez sentir sua crueza

Àquelas, cujas duras, tristes sortes

Com firme e conjugal nó lhe juntaram,

Que com seu próprio sangue desataram.

XIX. Este jugo cruel, d’homem alheio

Com que tratava ao que é estranho, e o que é sujeito

O pôs em tal cuidado, em tal receio

Que se velava mais do mais aceito,

O que tem de mercês e honras mais cheio

Lhe vem depois a ser o mais suspeito,

Porque a mortífera honra e a dignidade

Motivo é d’ódio, mais que d’amizade.

XXII. Nem somente do ferro temor sente,

Que a peçonha também lhe dá cuidados,