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Isto lhe faz banhar continuamente

D’humano sangue, o bosque, o monte, o prado,

Porque ante ele nenhum era inocente

Que só numa suspeita era culpado,

Mas nem assi alcança o que procura,

Que nem com tantas mortes se assegura.

Nesse mesmo dia, Manuel de Sousa, o capitão de Diu, começou a reforçar a defensão da fortaleza, recomendando a todos que estivéssemos sempre prestes para o que desse e viesse. E o primeiro conflito não tardou a rebentar.

Só a duras penas tolerávamos a soberba dos mouros e turcos que viviam na cidade de Diu, os quais, seguros de não gozarmos do favor do sultão, cada vez que topavam connosco, faziam grande surriada e tratavam-nos como se fossemos cativos, cuspindo-nos e cobrindo-nos de injúrias. Já não saíamos sós da fortaleza porque, se apanhavam um de nós por ruas escusas, espancavam-no até o deixarem como morto. Manuel de Sousa não queria guerra e recomendava-nos muito para não respondermos às provocações nem retribuirmos as ofensas e nós obedecíamos, mas andávamos agravados e em sanha.

Um dia em que fui com nove companheiros montar guarda aos escravos que iam buscar água para encher a cisterna e lenha que havia mister armazenar, para o caso de nos porem cerco à fortaleza, cruzámo-nos com um bando de mouros arruaceiros e um deles fez menção de me dar uma bofetada. Eu que, mal os vira, tinha sacado disfarçadamente o punhal da bainha, enterrei-lho no peito, impedindo a agressão. Os parceiros do morto desataram numa grande berraria de “Mata! Mata!” e a bradar por socorro, fazendo acudir de todas as partes muitos mouros com pedras, espadas e punhais, que nos caíram em cima, matando três dos meus companheiros, apesar de nos defendermos com unhas e dentes.

Vendo que não podíamos levar a melhor a tantos adversários, por já estarmos muito feridos, pusemo-nos em fuga para a fortaleza, abandonando os mortos e arrastando connosco os mais feridos. Como não conseguíamos correr muito, desesperávamos já de nos salvar, tendo aqueles cães a morderem-nos os calcanhares, mas os vigias da fortaleza deram-se conta da perseguição e fizeram soar o alarme, com que todos se armaram para nos acudir. O capitão não os deixou acometer os mouros e saiu só com os trinta alabardeiros da sua escolta, desarmado, para que vissem que não ia pelejar e, dando-nos pancadas com uma cana que trazia nas mãos, nos meteu dentro da fortaleza.

O Rao Medim, capitão da terra, que também acudira à revolta, fez recolher os mouros para a cidade, onde eles satisfizeram a sua vingança matando cinco portugueses que estavam a fazer tratos e nada sabiam do motim. Manuel de Sousa queixou-se destas mortes, mas Bahadur riu-se dele, dizendo-lhe que a culpa era nossa, porque roubávamos e fazíamos muitos danos na cidade, segundo lhe contava o Rao, e não puniu os assassinos nem os entregou à nossa justiça.

Ao cair da noite, Manuel de Sousa recebeu um bilhete, escrito na língua da terra, a avisá-lo de que o sultão só esperava por um descuido ou imprevidência dos portugueses para assaltar e tomar a fortaleza. Mandara fazer muitas armas e construíra mais de quarenta fustas para nos combater, embora dissesse a quem o queria ouvir que era por causa da guerra com os mogores. O recado não vinha assinado e quando o capitão quis conhecer quem o trouxera, para recompensar o mensageiro e saber quem o mandava, foi-lhe dito que um rapazola embuçado o metera nas mãos do porteiro que assomara ao postigo e desaparecera numa corrida. Manuel de Sousa não esperou pela manhã para reunir conselho e disse-nos:

– Vou escrever ao governador para lhe pedir que venha com a armada para Diu, porque Bahadur está a preparar uma revolta. Só vendo a nossa força, perderá a soberba e se aquietará. Este amigo que nos avisa do perigo não é outro senão Coja Çofar, que tudo sabe por ser da privança d’el-rei, mas não quer dar a cara por temer a sua vingança.

Por ser de natural brando e crédulo e não desejar a guerra, o capitão confiava no renegado italiano, o qual com grande dissimulação jogava com um pau de dois bicos, fingindo espiar-nos para estar nas graças de Bahadur e espiando el-rei para agradar a Manuel de Sousa, embora descobrisse quer a um quer a outro apenas o que poderia reverter mais tarde em seu próprio benefício. Assim, o sagaz espião informava o capitão das armas e, sobretudo, das fustas de guerra que o sultão construía – e nós já sabíamos, porque as víamos competir umas com as outras nos rios em treinos de batalha, embora el-rei dissesse que era para seu desenfadamento – e, por outro lado, aconselhava Bahadur a mostrar-se nosso amigo e a fazer-nos muitas mercês, contando para isso com a mãe d’el-rei que recomendava ao filho que esperasse até conseguir matar o governador, por ser ele e não o capitão a cabeça dos portugueses. Com Nuno da Cunha morto, facilmente seríamos desbaratados e a fortaleza tomada sem trabalho.

El-rei decidiu seguir-lhes os conselhos e passou a convidar o capitão para comer com ele nos paços, nos seus aposentos privados, servidos pelas suas mulheres e concubinas; mandava chamar os portugueses para fazerem demonstrações de luta ou para tangerem e cantarem à nossa maneira, dando cabaias luxuosas por prémio aos vencedores. Visitava com igual frequência a fortaleza, acompanhado apenas dos seus criados, para mostrar como confiava em nós, comendo e bebendo com Manuel de Sousa e os seus oficiais, o que a todos espantava, por se saber que tinha tanto medo de ser morto com peçonha, que preparava e cozinhava a sua comida com as próprias mãos.

Sendo homem acelerado e petitoso, de espírito mudável como um zingamocho, uma noite, quando estávamos já todos recolhidos na fortaleza, veio bater-nos ao postigo, perdido de bêbado, acompanhado apenas por uma pequena escolta com tochas para lhe alumiar o caminho. À pressa, Manuel de Sousa mandou tocar as trombetas e, como andávamos em alerta de guerra, acorremos todos prontamente, vestidos e armados, ao terreiro da fortaleza. Perfilámo-nos, ordenados em duas alas, com muitos brandões acesos, formando uma rua por onde el-rei havia de passar, interrogando-nos sobre o que viria ele fazer à fortaleza àquela hora da noite.

– Isto cheira-me a cilada! Não terá el-rei o seu exército à nossa porta, à espera do seu sinal para acometer a fortaleza?

– E arriscar-se a ser morto ou ficar nosso refém? Bahadur não é assi tão louco.

– Espero que não venha com talante de ir correr por cima das nossas ameias e torres mais altas! É assaz doudo pra fazer leviandades destas, tão pouco pertencentes a rei!

– É bem capaz de nos convidar pra essa folia, como costuma fazer aos embaixadores estrangeiros pra mostrar coragem. E eu vou-me escusar, inda que me chame covarde. Era só o que me faltava, andar a pular no alto das ameias: se tenho de morrer que seja a combater.

O capitão foi em pessoa abrir-lhe o postigo e nós calámo-nos quando Bahadur entrou só com três homens e quatro pajens, mandando o resto da sua companhia ficar fora da fortaleza. Cambaleava e ria-se muito, contudo, ao ver os novecentos portugueses armados, cujas armas resplandeciam na claridade dos archotes, assustou-se e perguntou agastado:

– Porque se armam os portugueses para me receberem, sendo eu irmão d’el-rei de Portugal?

– Não estranhe, Vossa Alteza – dissimulou o capitão, contando com a sua vaidade –, os portugueses armam-se sempre para receber com muita honra os reis que entram nas fortalezas d’el rei de Portugal.

Bahadur tomou-o pela mão, rindo-se muito, e pediu:

– Capitão, dá-me de comer, que trago fome.

Entrou na casa em que pousava Manuel de Sousa e, deitando-se num esquife52, recostou-se nas almofadas e gabou com voz avinhada, por entre soluços:

– Tens umas belas casas, capitão!

– As casas, toda a fortaleza, eu e os demais portugueses são pertença de Vossa Alteza – disse-lhe Manuel de Sousa, que já me mandara trazer-lhes de comer e de beber.

– Bofé, amigo – repontou Bahadur com sanha –, esta fortaleza não é minha, mas d’el-rei teu senhor, e as casas são tuas!

Falou em português, pois já sabia bem a nossa língua, mostrando-se de novo irrequieto, às voltas no leito improvisado, como afrontado do vinho. De repente, pareceu esquecer-se do lugar em que estava e começou a murmurar frases sem sentido, com voz entaramelada, ora cantando, ora falando na sua língua: