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– Portugueses ladrões! É dar-lhes, dar-lhes! Matar! Matar!

Os da sua comitiva estavam estarrecidos com o seu despropósito e falavam muito alto de modo a abafar-lhe a fala, para que nenhum de nós percebesse o que ele dizia, mas vendo que Bahadur se não calava, procuraram dissimular com risos e motejos:

– Não deveis fazer caso do que diz el-rei! Quando bebe, fica sempre assi, tão fora de seu siso que até diz doestos contra a sua mãe.

No entanto, não ousavam interrompê-lo e el-rei parecia não ter vontade de se calar.

– Capitão – bradou, semicerrando os olhos, erguendo o púcaro vazio para que lho enchessem –, se quiseres eu serei teu cativo e te encherei esta fortaleza de dinheiro pelo meu resgate, se não me fizeres mal.

Era uma provocação e os seus acompanhantes empalideceram ainda mais, decerto temerosos por Bahadur nos estar a meter na cabeça ideias tão tentadoras como perigosas.

– Senhor – retorquiu Manuel de Sousa, com voz risonha, temendo ver surgir algum conflito da parte da nossa gente –, esta fortaleza pertence-te e aqui somos todos teus cativos.

João Santiago, um renegado que lhe servia de língua, procurava amansá-lo, mas el-rei cuspia-lhe quando ele lhe falava, arrancando muitos risos forçados e zombarias à assistência. Alguns dos nossos que sabiam a língua tinham percebido tudo o que Bahadur dissera e chamaram o capitão à parte, de modo a Santiago não os ouvir:

– Capitão, não descureis as ameaças d’el-rei, porque é costume os bêbados falarem o que têm no coração.

– Cuidai bem nisto, que depois de perdida a boa ocasião vem tarde o arrependimento.

Manuel de Sousa entendeu que o instavam a matar Bahadur com todos os da sua companhia, mas aconselhado por mim e por outros da sua privança não consentiu, por ser traição e desonra para os portugueses, matá-lo naquele estado e dentro da fortaleza que o acolhera.

– Os portugueses já fizeram outras faltas e quebras de palavra na Índia, que nunca foram estranhadas porque os seus reis e grandes senhores o fazem entre si constantemente – ripostaram os do partido contrário.

– Calai-vos todos – ordenou o capitão em voz alta e com merencoria –, porque el-rei quer dormir!

Valeu-nos Deus, não permitindo que o matássemos, porque o Rao Medim, vendo como Bahadur viera ter connosco, bêbado e sem a sua guarda, seguira-o em segredo com muita gente armada e montara apertada vigilância a toda a volta da fortaleza, prestes para acometer ao primeiro som de rebuliço e luta. Contudo, por volta da meia-noite, Bahadur sossegou e foi-se em boa hora para os seus paços, amparado pela sua gente e o Rao, ao vê-lo sair de boa saúde e abraçado aos seus pajens, recolheu-se com a sua gente sem ser visto por el-rei nem pelos vigias da fortaleza.

No dia seguinte, tendo cozido a bebedeira, o sultão negou ter ido à fortaleza, estranhando muito que lhe dissessem o contrário. Coja Çofar, que nada sabia desta aventura, temendo que el-rei tivesse falado demais e dito algo de comprometedor para as suas ambições, mandou um criado avisar Manuel de Sousa para ter cuidado, porque, de noite, andara muita gente armada a rondar-lhe a fortaleza.

Na noite seguinte, passando já do quarto da prima53, de novo se agitaram os ânimos dos portugueses, com outra visita misteriosa. Da parte de fora da fortaleza, por baixo da varanda das casas do capitão, veio ter o mesmo embuçado que dera o aviso da traição de Bahadur a Manuel de Sousa e pôs-se a chamar por ele, dizendo que lhe queria falar. O vigia da muralha foi com um língua acordar o capitão, que assomou à varanda. O encoberto falou-lhe na língua da terra, com uma voz fina, como a de uma mulher ou de um capado, como os que estavam de guarda aos paços de Bahadur.

– Sabes, capitão, que pela manhã serás chamado por el-rei para te matar, pelo que não deves ir, escusando-te com estares enfermo. Bahadur já convocou os seus oficiais para te fazerem uma espera e, depois de te matarem, virão acometer a fortaleza. Para veres que a isto não me move interesse, mas apenas o teu bem, nunca saberás meu nome. Fica-te em boa hora.

Desapareceu tão silenciosamente como chegara, por entre sombras, onde o capitão julgou distinguir outro vulto corpulento. Sabia que o seu anjo da guarda não podia ser Coja Çofar ou o Rao, como de início pensara, mas não fazia a menor ideia de quem lhe poderia querer tamanho bem, que arrostasse com tal perigo de vida a fim de o salvar.

Na manhã seguinte confirmaram-se os avisos da véspera, quando chegou um emissário com recado d’el-rei para que o capitão o fosse ver dentro dos seus paços.

– Albarde-se o burro à vontade do dono – murmurou Manuel de Sousa, decidido a entrar no jogo e foi apresentar-se a el-rei, sem armas, só com uma pequena comitiva.

Bahadur que já mudara de tenção, com a sua natural inconstância, ou achara desonroso matá-lo no seu paço assim desarmado e em visita de amizade, convidou-o para comer com ele nos seus aposentos, servidos pelas suas favoritas. Quando a concubina que el-rei lhe destinara para o servir lhe deitou água de um gomil nas mãos e lhe deu uma toalha para as enxugar, Manuel de Sousa achou preso nela um bilhete que se apressou a guardar sem que ninguém visse.

– Um relógio passou/ e outro começou./ Bendito seja/ o nome de Jesus/ mais a sua santa mãe/ que por nós rogue também/ e da morte nos proteja.

A melopeia cantada pelo grumete faz sobressaltar toda a gente e o mestre da nau que ouvia a história, embora atento ao serviço da sua gente, diz sorrindo, mas com autoridade:

– Será melhor deixar o resto para amanhã, Bento Castanho, que já passa um relógio do quarto da modorra, a minha gente há mister dormir e eu vejo que não arreda pé, desejosa de vos ouvir.

Soam alguns protestos, mas também bocejos. O veterano de Cochim e Diu desculpa-se, envergonhado:

– Tendes razão, deixei-me levar pelas recordações que tenho ainda mui vivas e nem deixei o bombardeiro Tristão Gomes botar faladura. Perdoai-me.

– Não há que perdoar! – brada Fernão Mendes Pinto, ainda arrepiado do relato. – Ficámos a conhecer as razões que levaram à morte de Bahadur, embora não saibamos o modo como morreu.

– Amanhã o contarei, se vossas mercês ainda me quiserem escutar.

51 Poema épico de Francisco de Andrade, publicado em 1589.

52 Canapé, divã.

53 Primeiro turno de vela, das oito horas à meia-noite.

Não há árvore que o vento não tenha sacudido

(hindu)

A Quarta-feira de Cinza, em amanhecendo, se fez toda a armada à vela e foi demandar o porto. El-rei [Bahadur] neste tempo andava monteando na terra firme às gazelas, e assi como a armada vinha seguindo sua viagem, assi ele pela terra se vinha chegando sua viagem para a cidade; e, sendo já a dita armada dentro do porto, chegou um criado d’el-rei em uma fusta a dar boa-vinda ao governador e trazer-lhe parte da caça que aquele dia ele fizera, a qual era dezoito gazelas, e a cada uma faltava a carne da metade de uma perna, sem lhe ser tirada a pele; e assi mais muitas galinhas, todas sem cabeça.

Estas demonstrações e abusos, como sejam naturais nos Mouros e em eles costumem prognosticar seus desejos e determinações, foram de todos os que no galeão vinham com atenção olhadas e praticadas. O governador recebeu o presente e mandou sua resposta a el-rei, e que, se não viera tão mal disposto, que logo o fora ver; porém, que como a enfermidade lhe desse lugar, o faria.

(O Primeiro Cerco de Diu, de Lopo de Sousa Coutinho)

Viajantes, soldados e tripulantes não quiseram esperar pela noite para escutar o resto da história de Bahadur e conhecer de que modo se dera a sua morte. Ao fim da manhã, deixara de soprar bafo de vento e a Cisne ficara ao pairo, com a mezena54 baixa, ao som das águas, quase imóvel, dando pouco serviço aos matalotes. Apesar do calor denso e húmido, o céu mantinha-se um tanto afumado, o que impossibilitara o piloto de tomar a altura do sol ao meio-dia, mas permitia a muita gente estar na coberta, sem ter de lutar por um dos raros lugares à sombra ou sujeitar-se a sofrer a mordedura de fogo nos lombos.