Fernão vê Bento Castanho e Tristão Gomes, apoiados contra a bordadura da nau, entretidos em animada prática, como se fossem velhos companheiros e não ousa intrometer-se, embora esteja em ânsias para conhecer o resto da história. Os ouvintes da véspera e outros novos, decerto com a curiosidade aguçada pelos comentários dos primeiros, vão-se acercando dos dois homens, tomando lugar onde lhes parece que melhor os poderão escutar. Em menos de um credo, forma-se uma assembleia tão numerosa como para assistir a um entremez ou ao suplício de um assassino.
– O bilhete que Manuel de Sousa recebeu era. da concubina do sultão? – pergunta a esposa do mercador de Aveiro, mal esmoreceu o ruído das saudações e das conversas.
Apesar da sua curiosidade em conhecer quem seria o misterioso protector do capitão dos portugueses e de ter pensado nele mais de uma vez, desde a noite anterior, Fernão está mais interessado em saber como se deu a morte de Bahadur e o que estava a passar-se em Diu por causa disso. Castanho fora muito prolixo e cheio de minudências no seu relato, a continuar assim, se Tristão Gomes for um narrador do mesmo jaez, chegarão a Chaul sem saber como termina a história.
– Manuel de Sousa nunca descobriu de quem era o recado, embora nós o soubéssemos depois. Não trazia nome, mas vinha escrito na língua da terra com a mesma letra dos anteriores, a avisar o capitão de que, quando chegasse o nosso governador, Bahadur iria convidá-lo e aos principais fidalgos para um banquete na quinta do Melique, nos arredores de Diu, onde el-rei costumava tomar pousada com as suas mulheres para se desenfadar. Aí trataria de os prender a todos e logo tomaria a fortaleza, tendo já a sua armada no mar prestes para combater a nossa e tomar vingança. Jurara dar os fidalgos portugueses como escravos aos seus cabos de guerra e mandar o governador, metido numa jaula de ferro, de presente ao grão-turco, no Cairo.
Quem quer que fosse o seu informador, sempre provara ser verdadeiro e o que lhe dizia era a confirmação da deslealdade de Bahadur, porém, Manuel de Sousa começava a exasperar-se por receber tantos e tão desvairados avisos sobre a má-fé do sultão e das teias de traição que ele tecia à nossa volta. Preveniam-no os seus oficiais, avisavam-no Coja Çofar e o Rao da cidade, assim como Diogo de Mesquita e o governador e, por fim, aquele amigo misterioso que, com risco de uma morte terrível se fosse descoberto, se atrevia a vir de noite à fortaleza ou a violar a clausura do harém do próprio sultão para lhe dar aviso.
– Por quem me tomam todos, afinal? Crêem-me assi tão néscio que não conheça a traição de Bahadur? Cuidarão que sou brando e fraco, porque dissimulo com el-rei, à espera do momento propício para o prender? Tão mau capitão serei eu, para que me não dêem algum crédito?
Hesitava ainda no que deveria fazer e a carta do Nuno de Cunha fora a gota de água que fizera transbordar a sua sanha, pois o governador, além de o avisar que desconfiasse do sultão, lhe ordenava que o prendesse assim que ele entrasse na fortaleza. E, se gente armada viesse acometer a fortaleza para soltar Bahadur, o capitão deveria mostrá-lo das ameias carregado de ferros e, se ele os incitasse à guerra, que ali mesmo o enforcasse à vista de todos. Embora não o confessasse, Manuel de Sousa maldizia da sua vida por não ter prendido o sultão naquela noite em que viera visitá-lo a proferir ameaças, como lhe exigiam os seus oficiais e os fidalgos, que por isso o recriminavam e apodavam de fraco. Tivera escrúpulos em exercer violência contra um homem que se entregava à sua hospitalidade, desarmado, confiante e. bêbado; se o fizesse, a sua honra ficaria para sempre manchada.
No dia catorze de Fevereiro do ano passado, que foi quarta-feira de Cinzas, a armada do governador entrou no porto de Diu. Nuno da Cunha preparara uma armadilha a Bahadur, fingindo-se doente para se desculpar de não o ir visitar, de modo a que o sultão o fosse ver à fortaleza, como fizera outrora. Ali o prenderia e levaria para Goa, onde o teria com todas as honras, mas a bom recado.
Uma fusta acostou ao galeão com um criado d’el-rei para lhe dar o presente de boas-vindas do seu senhor, de dezoito gazelas despedaçadas e galinhas sem cabeça. Nuno da Cunha entendeu que aquela oferta era de guerra e não de paz, mas aceitou o presente, com muitos agradecimentos, em voz fraca e alquebrada, rogando ao mensageiro que o escusasse ante el-rei e lhe dissesse que o iria visitar mal a sua doença lho permitisse.
Quando o mensageiro lhe deu a notícia, nos paços da cidade, Bahadur mandou recado a Manuel de Sousa, para que o levasse sem demora ao galeão a visitar o governador que vinha muito doente. O capitão, desconcertado com a sua afoiteza ou desvario, obedeceu, mandando avisar com muita urgência Nuno da Cunha que se preparasse para a real visita. O governador ficou igualmente engodilhado e, à pressa, convocou os oficiais e fidalgos da armada para virem vestidos com as suas melhores galas fazer o recebimento a el-rei no seu galeão, cuja tolda mandou cobrir com ricas alcatifas e coxins, dando ordens para que em todos os navios se hasteassem muitas bandeiras e estandartes.
Duzentos homens armados, dos quais setenta eram fidalgos principais, fizeram alardo no convés para saudar o sultão, porém, a pergunta que andava no ar era: – Vamos matar Bahadur? Vamos matar o traidor? Uns diziam que era essa a sorte que merecia o fementido, outros declaravam que vinha em visita de paz e cortesia, pelo que seria grande infâmia e ignomínia matarem-no ali.
Bahadur chegou numa pequena fusta, sem nenhuma pompa, vestido com um pano verde e uma touca preta, com um cris55 de ouro à cinta, como símbolo de realeza, porque as suas armas – um terçado e o arco com o coldre das flechas – eram transportadas por dois formosos moços que lhe serviam de pajens. Acompanhavam-no Manuel de Sousa e treze dos principais senhores do reino, entre os quais Coja Çofar com o seu genro, um portentoso janízaro que tinha a alcunha de Tigre do Mundo, por ser um grande lutador em muitas armas. Mais atrás vinham quatro fustas com os seus criados e oficiais.
O cortejo passou por entre toda a armada que o saudou com muitas salvas de artilharia, grandes aclamações, apitos e fanfarras de festa. Nuno da Cunha esperava-o ao portelo, de cabeça descoberta, vestindo uma loba aberta de chamalote, como quem se levanta da cama. Ao ver tanta gente armada, Bahadur empalideceu, como se só naquele instante se tivesse apercebido de que o governador sabia da sua traição e que ele se viera meter na boca do lobo.
– Se eu soubera quão maltratado estáveis pela enfermidade – disse, dominando o receio e tratando de assegurar a hospitalidade que lhe devia o governador –, eu vos mandara dizer para vos não levantardes da cama, mas já que assi foi, vamo-nos assentar na vossa câmara.
Agarrou-o por um braço e encaminhou-se para o castelo da popa, saudando alguns fidalgos que conhecia. Todos olhavam para Nuno da Cunha à espera do sinal para se lançarem sobre o sultão, porém, o governador desviou o olhar e levou el-rei para a sua câmara, juntamente com Langarcão, Aminacem, Coja Çofar, o Tigre do Mundo, o língua João Santiago e um dos pajens. A desconfiança e o medo haviam-se instalado no bando e durante a meia hora que estiveram dentro da câmara pouco falaram, ansiosos por se verem fora do galeão.
Manuel de Sousa, sabendo que Nuno da Cunha queria prender el-rei e não tivera tempo de concertar com ele o modo de o fazer, mandou o pajem do governador ir até à varanda da câmara perguntar-lhe à orelha o que devia fazer, o que o pajem cumpriu sem custo, pondo-se de joelhos por trás do seu senhor, que estava perto da varanda, para lhe dar o recado em segredo. Isto levantou suspeitas a Bahadur que levou a mão ao cris e o língua João de Santiago, que estava entre ambos, disse à pressa: