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– Senhor, não ouçais recados, vede el-rei que vos fala!

Nuno da Cunha afastou o pajem com a mão, sem o ouvir, mas já Bahadur se erguia para se retirar, e o governador, apoiando-se no ombro de um dos seus capitães para mostrar quão fraco estava, acompanhou-o até ele embarcar com a sua comitiva, com grande sanha dos fidalgos que o queriam matar. O sultão entrou na sua fusta a gritar à chusma que remasse depressa para terra, partindo logo sem dar sequer tempo a Manuel de Sousa de embarcar com ele. O capitão meteu-se num catur, acompanhado pelo seu pajem e por Diogo de Mesquita, seguindo no seu encalço. No galeão toda gente mirava o governador à espera de uma explicação por tê-lo deixado partir a salvo.

– Vós que me olhais – disse-lhes agastado – metei-vos nessas fustas que estão a bordo e acompanhai el-rei. Fazei o que Manuel de Sousa vos disser.

Era o sinal esperado. O governador não quisera a infâmia de matar no seu navio o rei da terra que o visitava, desarmado e em roupagens de paz, porém no mar a situação era outra. Ainda o eco das suas palavras não se esbatera e já todos embarcavam onde calhava. Por sorte, meti-me na fusta de Lopo de Sousa Coutinho que tinha bons remadores e a quem ele esforçava para se porem a par do catur do capitão de Diu que, todavia, chegou primeiro ao barco de Bahadur.

– Dize a Sua Alteza – bradou Manuel de Sousa em alta voz a Santiago – que se passe a este meu catur, pois o governador manda que se vá à fortaleza.

– Que doudice é essa, Manuel de Sousa? – repontou o língua com azedume. – A um príncipe tamanho se há-de falar tal cousa? Passai-vos vós cá e dizei-lho – voltando-se para Bahadur preveniu-o: – Estes te querem matar, meu senhor.

De súbito vimos Manuel de Sousa cair ao mar e atrás dele lançar-se o seu pajem para o ajudar, ao mesmo tempo que Lopo de Sousa mandava chegar a nossa fusta ao catur, para onde saltou, indo ajudar Diogo de Mesquita a recolher o capitão e o moço. Bahadur parecia contristado e fazia sinal com a mão a Manuel de Sousa chamando-o para o seu barco, para onde foi içado. Pedro Álvares de Almeida, António Correia, querendo ajudar, saltaram com ímpeto para a proa onde estava el-rei que se assustou e deu uma ordem aos seus homens. Diogo de Mesquita, que estava com Lopo de Sousa da banda da popa, entendeu a fala do sultão e gritou para os companheiros:

– Vão matar-nos!

O Tigre do Mundo, fazendo jus ao seu nome saltou sobre o desprevenido Manuel de Sousa e enterrou-lhe um cris nas costas, lançando-o morto ao mar. Mesquita agarrou Bahadur por um braço e deu-lhe uma cutilada com a espada, ferindo-o ligeiramente.

– Matem-nos! Matem-nos! – bradou el-rei, sem se defender.

Os guzarates Langarcão e Aminacem, com alguns criados de Bahadur, arremeteram contra ele e contra Lopo de Sousa e António Correia que se tinham posto a seu lado, de espadas desembainhadas, ao mesmo tempo que na proa outros mouros matavam Pedro Álvares de Almeida que ficara sozinho e atiravam o seu corpo ao mar.

Eu nada pude fazer para os ajudar porque os nossos remeiros estavam tão assustados que se afastaram do barco antes de eu poder saltar para dentro, apesar das minhas ameaças para que se acercassem. E o mesmo se passou com os das outras fustas, porque o pajem turco, portador do arco e do arcaz com as flechas d’el-rei, começou a disparar com tão boa pontaria que não perdeu um só tiro, matando e ferindo muita gente na primeira fusta, de modo que os remeiros das restantes só se chegaram ao barco quando o moço ficou sem flechas e foi morto de um tiro de arcabuz. As fustas que traziam os criados do sultão davam combate às nossas, com grande fereza.

Assim, impedidos de os socorrer e em sanha contra as chusmas covardes, víamos Diogo de Mesquita, Lopo de Sousa Coutinho e António Correia, já muito feridos, a lutarem contra os mouros com grande valentia, embora sem esperança de vencer. Deus compadeceu-se deles, porque, cansados de lutar e desesperados por não os conseguirem matar, os homens do sultão lançaram-se todos à uma sobre eles e atiraram-nos ao mar, de onde logrei recolhê-los meio-mortos.

Logo que ficou desembaraçado dos portugueses e vendo-se rodeado de mortos e feridos que não o poderiam defender, o sultão ordenou aos remeiros que o levassem depressa para terra ou seriam todos mortos pelos inimigos desejosos de se vingarem. Esperava salvação dos três navios da sua frota, cheios de turcos bem armados, que avançavam a grande força de remos, vindo meter-se entre as nossas fustas e a sua, para o protegerem, porém, viu cortada a fuga para a cidade por um catur dos nossos que lhe acertou no barco com um tiro de berço, matando-lhe alguns remeiros. O sultão lançou-se ao mar, procurando nadar para terra, mas como a corrente não lho permitiu, decidiu entregar-se nas nossas mãos a fim de salvar a vida.

Quanto ao que se passou a seguir, ninguém, mouro ou português, o soube bem contar. Há quem diga que el-rei se pegou ao remo de uma das nossas fustas a gritar Bahadur! Bahadur!, mas, o remador, vendo-lhe o cris de ouro à cinta, julgou que era um dos mouros ricos da sua comitiva e matou-o com um chuço, lançando-se à água para lhe tirar o punhal, antes de o corpo se afundar e só por ele é que se soube da sua morte. Outros disseram que Tristão de Paiva, um fidalgo de boa condição, capitão do catur que viera da fortaleza, tentara salvá-lo, mas os seus homens traziam tais desejos de vingança que não obedeceram, com a cobiça de lhe roubarem o cris, um feriu-o no rosto com um chuço, outros golpearam-no até o matarem e ele se soltar do barco desaparecendo nas águas.

Ao saberem da morte do sultão, os moradores da cidade começaram a fugir com o que podiam transportar, em tamanha desordem que muitos perderam a vida espezinhados nas portas das muralhas ou caindo delas ao tentarem descer por cordas e escadas. Nuno da Cunha mandou ir à sua presença Coja Çofar, o único sobrevivente da comitiva real, que ficara ferido e fora entregue aos cuidados de Garcia de Orta, o físico de Martim Afonso de Sousa.

– A morte d’el-rei foi merecida, porque nos fez traição – justificou, mostrando-se assaz magoado. – Quanto a vós, Coja Çofar, não deveis temer qualquer castigo, dano ou perda dos vossos bens. Volvei à cidade e sossegai os seus moradores, porque deles não hei razão de queixa e pesa-me muito que tenham medo aos portugueses. Dizei-lhes que nenhum mal receberão de nós, antes os defenderemos de quem os ofender. Como sois homem de grande crédito, dar-vos-ão ouvidos e eu vos farei governador da cidade.

Nuno da Cunha desconhecia, tal como o desventurado Manuel de Sousa e todos nós, quão fementido era Coja Çofar, uma verdadeira serpente que escondia o seu veneno no peito, enquanto tramava a perdição dos portugueses em Diu e outros lugares da Índia. Só o soubemos demasiadamente tarde, quando ele fugiu de noite com todas as suas mulheres e fortuna, recrutando muita gente armada. Juntou-se ao exército do novo rei de Cambaia, para servir de reforço à grande armada de Soleimão Baxá, a quem aconselhou que, antes de conquistar Goa, fosse tomar a fortaleza de Diu. Tanto quanto pude saber, foram estas as causas da vinda da armada dos rumes. Todavia, desse cerco donde salvámos Tristão Gomes, sei tanto como vós. Ele nos contará decerto o que por lá se está a passar.

Bento Castanho terminara o seu conto, mas a assistência não mostrava desejo de arredar pé e ir dormir.

– Vossa mercê contou esta história à maravilha, mas deixou um mistério por descobrir – lamenta-se a mulher do mercador, com um sorriso de desculpa.

– Qual? – pergunta o narrador em tom de zombaria. – Juro-vos que contei a história com toda a minudência e não me pesa a consciência de vos ter encoberto cousa alguma. Diga-me vossa mercê a sua queixa, para eu me poder redimir, emendando a falta.

– Vossa mercê disse que o capitão Manuel de Sousa nunca chegou a saber quem era o misterioso amigo que lhe dava avisos das traições de Bahadur, mas disse também que o havíeis descoberto. Não nos quereis revelar quem era?

Bento Castanho solta uma gargalhada bem-disposta.