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– Tendes razão, por vossa vida! Como pude olvidar-me de um caso tão singular? Descobrimos quem era o nosso anjo da guarda nas casas d’el-rei, onde fomos com o governador para lhe confiscarmos o tesouro. Demasiado tarde, pois a sua mãe, as mulheres e as concubinas já tinham fugido de Diu e posto a salvo tudo o que havia de valor nos seus paços; aí achámos o Tiro de Diu, o celebrado basilisco do Turco. Então, chegou-se a Nuno da Cunha uma mulher ainda moça e formosíssima, acompanhada de um escravo eunuco de grande arcabouço, pedindo para lhe falar. Disse-lhe que era portuguesa e cristã e que, com grande risco da sua vida, avisara por mais de uma vez o capitão da fortaleza dos perigos e ciladas de Bahadur, a quem odiava por ter feito dela sua escrava e a ter dado por esposa ao língua João de Santiago. O governador levou-a para a fortaleza, concedendo-lhe muitas mercês, em paga da sua lealdade. Sempre a ouvi nomear por a Marquesa, não lhe conheci outro nome. E, deste modo, fica desfeito o mistério. Amanhã, se vos aprouver, Tristão Gomes tomará o meu lugar e fará o seu conto do cerco de Diu.

Aplausos e assobios premeiam o esforçado narrador e a assistência retira-se para preparar a comida e fazer as tarefas que lhes destinem para a noite, porque o vento começara de novo a soprar.

54 Vela que se enverga na carangueja (o pau que sobe além do mastro, preso à parte superior da vela) do mastro de ré em ocasião de mau tempo.

55 Cris ou cris – uma adaga característica da Malásia-Indonésia, que é ao mesmo tempo uma arma e um objecto espiritual ou simbólico, cuja essência pode influenciar a vida de quem a possui, podendo mesmo torná-lo invencível.

Um mosquito pode fazer sangrar o olho de um leão

(árabe)

Carta de D. João de Castro a el-rei D. João III:

A guarda e fortaleza com que V. A. há de sustentar e acrescentar o seu estado e ter a Índia pacífica, é uma grossa e bem aparelhada armada e três mil homens disciplinados na guerra que possam entrar nela quando cumprir; e desta maneira e não de outra alguma estará a Índia segura de nossos contrários.

Não será fora de propósito dizer-lhe a que achámos e ao presente está em esta sua terra. As galés e galeotas são tão velhas e mal reparadas que nenhuma delas é para atravessar este golfão e este mal é o menor que nelas há . Os outros navios são poucos, e esses alquebrados e quase podres; parece-me que ou a ralé dos governadores não era esta ou eram tão valentes que sem armada queriam triunfar dos Turcos.

É grande o número de portugueses que nestas partes andam, porque de Sofala até à China, não há cousa que deles não seja trilhada; mas os que andamos em seu serviço somos poucos e mal ordenados, e, a meu juízo, cumprindo ao Vizo-Rei dar uma batalha a turcos, não poderá juntar dous mil homens. Daqui parece o sono e relaxamento de seu serviço que houve na Índia, pois há tantos anos que paga V. A. dezassete mil homens não tendo em seu serviço dous mil, nem falando em outros tantos que podem estar de guarda de suas fortalezas. Além de muitas onzenas, roubos, perdimento de vergonha, destruição da fazenda de V. A. nela achei muitos homens a que foram pagos vinte e trinta mil cruzados de soldos comprados a quinze e vinte por cento, e daqui para baixo infinitos.

Goa, ano de mil quinhentos e trinta e oito

Não pôde Tristão Gomes satisfazer a curiosidade dos companheiros de viagem porque nessa manhã chegam à vista da embocadura do rio Kundalika, no reino de Daquem ou Decão, por onde navegam duas milhas até à cidade de Chaul, com um grande porto de muito trato. Protegida da parte de terra firme, a Oriente, pelas altíssimas e agrestes serranias do Gate, a cidade estende-se para norte, a partir da larga enseada do rio, sendo muito mais comprida do que larga, recortada por formosas praias de aprazíveis palmares, com casas cobertas de palha. Na sua frente, ergue-se o morro de Chaul56, um monte escarpado, alto e redondo, coberto de espesso arvoredo, por onde correm muitos arroios de água, cobiçado por todos os governadores da Índia para a construção de uma fortaleza que defenderia a barra do rio, a qual substituiria com grande vantagem a antiga construção de Diogo Lopes de Sequeira, já a precisar de melhorias.

Terra fértil, de muito bom clima, cria muito gado e produz, além do algodão, grande quantidade de arroz e outros cereais, vegetais de todas as sortes e plantas medicinais e de cheiro, que são levados para Diu, Baçaim, Bombaim, Goa e costa do Malabar e recebe em troca produtos de todos os portos do Índico, sobretudo cavalos do mar Roxo e Ormuz, a sua maior fonte de riqueza. O porto tem pouco movimento de zambucos57 e de naus, por ainda não ser o tempo bom para a navegação, que é de Dezembro a Março.

– Falámos, há algumas noites, de D. Lourenço, o filho do vizo-rei D. Francisco de Almeida – lembra Bento Castanho a Fernão, enquanto observam as manobras da Cisne. – Foi morto neste rio, na grande batalha naval de Chaul, no ano de mil quinhentos e oito, quando aqui veio com a sua esquadra de oito navios e foi acometido pela armada turca de doze galeões e galés de alto bordo e quarenta fustas, comandada por Mir Hussein com a ajuda de Meliquiaz, capitão de Diu, que então era nosso inimigo.

– Como morreu?

– A nau capitânia ficou presa nos bancos de areia e foi arrombada pela artilharia e tomada pelos inimigos, enquanto as restantes naus fugiam vergonhosamente. D. Lourenço, com as pernas partidas por um pelouro, pediu que o atassem ao mastro e continuou a comandar os seus homens até morrer. O seu corpo desapareceu nas águas e nunca foi encontrado, por isso, este rio é muito venerado pela nossa gente da Índia. No ano seguinte, o vizo-rei vingou a morte do filho na grande batalha de Diu em que desbaratou as armadas conjuntas de Mir Hussein, Meliquiaz e do Samorim de Calecut, com as duas frotas de Tristão da Cunha e de Afonso de Albuquerque. Cumpriu a sua jura de que quem o frangão comeu há-de comer o galo ou pagá-lo.

Fica em silêncio, como quem ora. Fernão não o perturba, perdido já na contemplação da nova terra que não tardará a pisar, se a Cisne for capaz de entrar por aquele boqueirão estreito e temeroso, devido a uma grande restinga58 que sai da praia, onde se ergue a cidade, e quase cinge o rio; as manobras da nau cortam-no de tanto medo que sente a pele arrepiar-se.

– O capitão de Chaul tem de me enviar a Goa – diz Tristão Gomes, chegando-se a eles. – O vizo-rei deve saber o que se está a passar em Diu, antes que seja demasiado tarde. Por este andar, vai perder a fortaleza com toda a nossa gente.

Por fim, lançam ferro no porto e Jorge Fernandes Taborda, para a sua visita ao capitão Simão Guedes, decide levar consigo os principais mercadores, assim como Bento Castanho, Tristão Gomes e Fernão Mendes Pinto, por causa das suas histórias singulares e dos testemunhos que podem dar da movimentação dos rumes, quer no mar Roxo, quer em Diu.

Chaul-de-Baixo é a cidade dos portugueses, situada na foz do rio, com o forte de S. Dinis construído no ano de mil quinhentos e vinte e um, com permissão de Nizamaluco que desejava a ajuda dos portugueses contra a gente de Dabul sujeita ao Hidalcão. Em Chaul-de-Cima, reside a população moura e gentia sujeita ao sultão de Ahmadnagar.

Seguem com uma pequena escolta pela margem norte do rio e Fernão pode ver como a cidade é populosa, apesar de ter perdido muito da sua importância para lugares como Goa, pois cruza-se com mercadores mouros de desvairadas nações e grande número de gentios brancos e pardos, por vezes quase negros. Andam descalços e de cabeça descoberta, uns trajados com camisas mouriscas, outros apenas com os seus panos de beatilha ou beirame – os melhores algodões da Índia –, que trazem em volta das espáduas e ancas ou só a tapar-lhes as vergonhas; as mulheres usam os mesmos panos brancos ou de belas cores, de modo a deixarem os seios nus. Há também muita gente armada de espadas, escudos, arcos e lanças de cana ou madeira.

A fortaleza de Santa Maria do Castelo, quadrada, feita em alvenaria de pedra, pode alojar cento e vinte homens dentro das suas muralhas. Antes de irem às casas do capitão, entram na pequena igreja de Nossa Senhora do Mar, a fim de lhe darem graças por os ter salvado dos turcos e trazido a bom porto.