Simão Guedes recebe-os com efusivas saudações, oferecendo-lhes refresco e pedindo-lhes um relato dos sucessos da viagem, das últimas novidades e da razão da sua vinda a Chaul. Contam-lhe como escaparam por milagre às galés turcas, depois de recolherem o companheiro que fugira do cerco.
– Tendes muita razão em dar graças a Deus por vos haver livrado de tamanho perigo – reconhece o capitão, impressionado com o que ouviu.
A seu lado, acha-se Pedro Vaz, um parente que ele enviara a Diu e lhe trouxera as primeiras novas do cerco. Tristão Gomes lembra-se que ele se recusara a ficar na fortaleza, apesar dos rogos de António da Silveira para que o ajudasse. Aproveita para lhe dar uma lição:
– O capitão está cercado pelos rumes e foi abandonado por muitos que tinham por dever de honra e de estado socorrê-lo – sente prazer em ver que o visado da sua encoberta censura ficou com as faces vermelhas. – Silveira fartou-se de pedir socorro a Goa, todavia, o vizo-rei, apesar de ter jurado que já ia a caminho com a armada, ainda não apareceu. Preciso de ir ter com ele, para lhe rogar que vá salvar a nossa gente!
– D. Garcia de Noronha é um fidalgo valente, que tomou parte nas conquistas de Goa e Calecut – replica Guedes, com um trejeito de mágoa –, porém, como ele mesmo diz, por ser muito velho, pobre e ter muitos filhos, não veio agora à Índia buscar trabalhos, mas sim riqueza e proveito. Mal chegou, desentendeu-se com Nuno da Cunha, depois de ele lhe ter recusado dinheiro da fazenda para prover a armada, dizendo-lhe que não o tinha. Por sua vez, como o vizo-rei não aceitou a sua oferta para ir acometer Diu com a gente que estava prestes, o governador pediu-lhe licença para ir para o reino, mas ele recusou-se a dar-lhe sequer uma nau, apesar de ter cento e setenta navios surtos no cais. Foi cousa nunca vista, negar-se ao governador da Índia, depois de dez anos de serviço, aquilo que não se recusa ao soldado mais bisonho, que é o seu regresso à pátria! Diz-se que D. Garcia desconfiou que Nuno da Cunha levava consigo a arca do dinheiro e enviou o piloto e mestre cartógrafo Diogo Botelho Pereira para lhe espiar as cartas e outros documentos, a fim de os mostrar a el-rei se neles achasse indícios de roubos ou faltas.
O nome do filho de Iria Pereira faz sobressaltar Fernão e Bento Castanho, que se olham anojados. Durante os serões na nau, ouvindo as histórias da vida da mãe e da grande viagem que fizera numa fusta para o reino, Fernão ganhara admiração e estima pelo moço, custando-lhe saber que ele se prestara a tão odiosa tarefa, só para se vingar do governador que, alguns anos antes, não lhe perdoara ter ido dar ao rei, sem sua licença, a notícia da construção da fortaleza de Diu.
– Já é sina nossa, estes desentendimentos entre os vizo-reis e os governadores! E quem sofre somos nós, os que andamos ao serviço da Coroa. Ainda havemos de perder a Índia por causa destes desaguisados! – desabafa Taborda.
– Como, segundo também nos disse, achou os cofres vazios – prossegue o capitão de Chaul –, o vizo-rei mandou pedir a todas as cidades e fortalezas um empréstimo tanto de dinheiro como de escravos para remeiros das galés porque os da terra fugiam, prometendo pagar tudo depois de livrar Diu do cerco. Como esta empresa é para o bem de todos os portugueses da Índia e salvação de suas casas e famílias, ninguém recusou o pedido, tendo D. Garcia reunido grandes somas de dinheiro.
– O Acedecão, senhor das terras comarcãs de Goa – acrescenta o feitor –, para estar nas boas graças do governador mandou-lhe um presente de mil vacas, mil carneiros, muita manteiga, trigo e arroz para sustento dos homens, assegurando-lhe a paz de Goa.
Tristão Gomes protesta indignado:
– Mais uma razão para não se entender as suas demoras em acudir a Diu.
– Diz-se que tem falta de gente – informa o feitor –, por isso enviou cartas de chamamento a todos os homens que soubessem servir-se das armas.
– Na sua armada vieram três mil homens! – exclama Castanho, surpreendido. – Tantas vezes vencemos batalhas e conquistámos reinos com muito menos gente.
– Apenas oitocentos desses reinóis são fidalgos, cavaleiros ou homens de criação das casas reais – contrapõe o capitão Guedes, com um riso amargo –, os restantes são gente bisonha, de quinhentos réis de soldo, criminosos, maltrapilhos e moços sem barba. Quando mais necessitamos de gente sabedora das cousas da Índia, calejada da guerra, trocam o governador e mandam-nos gente que nunca empunhou uma espada, sem préstimo para nada, quanto mais para combater.
O feitor tira uma carta de um estojo e agita-a no ar:
– A gente mais antiga da Índia, que queria combater sob as ordens de Nuno da Cunha, está muito agastada com esta mudança. Escreveram-me a contar a fala que Martim Afonso de Sousa fez ao vizo-rei quando este se queixou de não achar homens que quisessem ir na armada. Ouvi, que vale a pena. – Desdobra a folha e lê: – Senhor, os homens da Índia são já enfadados de sempre servir com muitos trabalhos e grande pobreza, de que vêm a morrer no hospital, os que não morrem no mar ou na guerra. E quando esperam mercê de satisfação, então se vai o governador com que serviram, e tornam a começar a servir de novo com o governador que vem; e assi são velhos no serviço e novos no merecer. Pelo que, senhor, não se espante vossa senhoria achar os homens enfadados, e a culpa não a deite aos capitães e fidalgos, porque esta é a verdade. – Conclui, com um sorriso, vendo os seus acenos de concordância: – Pelo menos Martim Afonso de Sousa conseguiu que D. Garcia pagasse os soldos adiantados e distribuísse alguns cargos e mercês pelos veteranos.
– Então, de que está ele à espera para acudir a Diu com a armada? – grita Tristão Gomes, exasperado. – Há mais de vinte dias, desde a resposta desafiadora que António da Silveira mandou a Soleimão Baxá, que os turcos dão pesada bateria à fortaleza, com cem peças de artilharia, cinco espalhafatos59 e nove basiliscos60 com tiros da maior grossura. Quando eu fiquei como morto na tranqueira de fora, dentro da fortaleza havia menos de oitenta homens sãos para a defenderem, já sem pólvora para as bombardas e sem pelouros para os arcabuzes. Pergunto-me se Silveira não estará já morto e a fortaleza tomada.
Exclamações de mágoa saíram de muitas bocas no final da fala de Gomes. A casa do capitão enchera-se de oficiais, fidalgos e mercadores, ávidos de ouvirem novas de Diu, onde tinham amigos e parentes. Em silêncio, fizeram uma prece para que Deus não abandonasse os sitiados nas mãos dos infiéis.
– António da Silveira escreveu ao capado uma carta de desafio? – pergunta-lhe o capitão Guedes, abismado. – Sabeis o que lhe dizia para assi o exasperar a ponto de querer arrasar a fortaleza?
Apesar da sua aflição pela sorte dos companheiros, Tristão Gomes solta uma gargalhada de puro gozo e conta-lhe o episódio com evidente orgulho:
– Ele leu-nos a carta enviada pelo baxá, depois da rendição do baluarte da Vila dos Rumes e escreveu a sua resposta diante de todos nós, dizendo-lhe que não se rendia a um paneleiro, sem colhões. Chorámos de tanta risa! Deixou-nos a todos com maior ânimo para o combate. Como podia esquecer-me das suas palavras? O capado intimava-o a render-se.
Acudi com todos os que não estavam de atalaia ao baluarte de Gaspar de Sousa, para ver o mensageiro. Com muitas exclamações de espanto, reconhecemos António Faleiro naquele homem de barbas rapadas, trajado como um rume, com calções, jaqueta de grã, cabaia turca de brocadilho e uma touca na cabeça. Vinha em liberdade, embora com alguns rumes a guardá-lo, com uma carta de Francisco Pacheco, ditada pelo poderoso Soleimão Baxá, para o capitão António da Silveira. Com uma grande surriada de risos, chistes e zombarias saudámos a sua transfiguração:
– Inda há pouco te rendeste, covarde, e já te fizeste mouro?