– Lá diz o ditado que uma má ovelha deita o rebanho a perder!
– Nunca m’enganaste, fodilhão renegado, sempre de amizade com os mouros da cidade, a falar a sua língua e a gabar-lhes os costumes deleitosos!
– Já te caparam, paneleiro? Vais guardar o harém do baxá?
– Soleimão Baxá fez-nos a todos muita honra e deu-nos ricas cabaias – bradou Faleiro, empertigando-se, fingindo não dar pelos doestos. – Perdoará a todos, se o capitão entregar a fortaleza, de contrário, quando a tomar pela força, não poupará a vida a ninguém. – Acrescentou sobranceiro: – Dai-me logo resposta porque Francisco Pacheco está em casa de Coja Çofar e quer tornar logo, pois se acha indisposto.
Estávamos convictos de que Faleiro fora o causador da rendição do baluarte, por há muito ter amizade e conversação com os mouros, decerto persuadindo com as suas manhas Francisco Pacheco, cujo ânimo fraco ele bem conhecia, a depor as armas e a entregar-se; se o capitão Gaspar de Sousa não nos tivesse impedido, o traidor teria sido ali mesmo crivado de tiros e de setas.
Deitámos-lhe um fio para ele atar a carta, mas, um dos turcos, por pirraça, prendeu-a numa flecha, que pôs no arco, despedindo-a pelo ar, em graciosa curva. A seta passou sibilando rente ao rosto de António da Silveira, que acabara de entrar no cubelo, indo cravar-se numa trave de madeira, por trás da sua cabeça. Sem pestanejar, o capitão partiu-a pelo cabo, desenrolou a carta e, vendo que ali estavam os seus principais combatentes, leu-a em voz alta. Finda a leitura, deixou-nos dar vazão à ira até as nossas pragas e doestos abrandarem, pediu que lhe trouxessem papel, penas e tinta, sentando-se a uma pequena mesa para escrever a sua resposta de modo a todos ouvirem o que mandava dizer ao capado.
Em benefício do seu leitor mais curioso e apreciador do pormenor e do anedótico de uma história, a narradora do tempo presente transcreve no capítulo seguinte a carta com a respectiva resposta, mau grado as vernáculas expressões nelas contidas, assegurando que se trata de documentos verídicos registados em crónicas coevas ou guardados em Arquivos das Bibliotecas Nacionais.
56 Este monte, quase inacessível, foi conquistado pelos portugueses em 1594, tendo sido construído um complexo sistema de fortificações, adaptado ao terreno, com uma couraça e vários baluartes, sobranceiro à povoação e ao porto. Chaul foi entregue aos maratas em 1740.
57 Zambuco, tal como o pangaio, era uma embarcação pequena, de madeira leve, com o tabuado atado só com cairo ou fio de palma, sem pregos ou juntura de metal, de fundo chato por causa dos baixios, com velas de esteira ou a remos.
58 Restinga é uma acumulação de areia e seixos que forma uma barra à entrada de uma baía.
59 Peça de artilharia que lançava pedras em redor, fazendo grande esborralhada no inimigo.
60 Grande canhão, de cerca de quatro toneladas, que atirava pelouros (balas) de ferro de quase quarenta quilogramas.
VIII
Os senhores amam a traição, mas ao traidor não
(português)
Carta de Francisco Pacheco a António da Silveira, Capitão de Diu, ditada por Soleimão Baxá:
Senhor, nós nos entregámos ao grão Soleimão Baxá com seu seguro chapado d’ouro, que nos deixariam ir livres para a fortaleza; e como nos saímos nos disseram que primeiro lhe devíamos ir fazer a salema61, e nos levaram à sua galé . Disse que era contente, como tomasse a fortaleza que logo nos daria embarcação para a Índia, e que se a não tomasse, que então nos deixaria ir para ela, como dizia em seu seguro.
Ele diz que lhe entregueis a fortaleza, com a pólvora e artilharia e suas munições e as armas, e que largará a todos, que com suas fazendas se vão livremente para a Índia; e que se isto não quiserdes fazer, por mar e por terra vos combaterá, e tomará, e vivos esfolará; e que isto poderá mui bem fazer, porque tem para isso bela gente e artilharia, e hoje se tirou fora um basilisco, e tirará quantos quiser. Haja nisto bom conselho, porque tudo o que quiser fará.
Resposta do Capitão António da Silveira a Soleimão Baxá:
Muito honrado capitão Baxá
Bem vi as palavras de tua carta, e do capitão do baluarte, que tens cativo por traição e mentira de tua palavra, afirmada com tua chapa; o que fizeste porque não és homem, pois não tens colhões, que és como mulher mentirosa e de pouco saber. Como me cometes que faça contigo concerto, pois diante meus olhos fizeste traição e falsidade?
Pelo que te não tenho em nenhuma conta . E sabe por certo que aqui estão portugueses acostumados a matar muitos mouros, e que têm por capitão António da Silveira, que tem um par de colhões mais fortes que os pelouros dos seus basiliscos, que não há medo nenhum a quem não tem colhões nem verdade.
O curral diante de ti está, com tal gado que já lhe tens medo e cometes concerto para fazer traição; o qual concerto inda que o eu quisesse fazer, aqui estão tais cavaleiros, que me deitariam no mar, e eles lho defenderiam .
E não sejas mais ousado a me escrever semelhantes cousas, porque a todos os que vierem com teu recado, mandarei espedaçar às bombardadas.
António da Silveira sente que está a perder o ânimo e isso será o fim de Diu, porque ele é o arrimo daquele bando de maltrapilhos esquálidos, escalavrados, famintos, de bocas apodrecidas a cheirarem como fossas, pernas inchadas que mal se sustêm de pé e mãos intumescidas, sem unhas, incapazes de brandir uma espada ou disparar um arcabuz. Danada peste, este mal de Angola62. Chamavam-lhe mal de Angola porque nas viagens para a Índia surgia por alturas de Angola, a dizimar as tripulações, causada pela falta de água e alimentos frescos. A água da cisterna está corrupta, há muito que não se come senão arroz bichoso e pão tão duro que os doentes, com as dores das gengivas, o não podem tragar, nem molhado.
Há vinte e cinco dias que sofrem os intensos ataques dos rumes, pois a sua carta deve ter despertado os maiores desejos de vingança de Soleimão Baxá, cuja sabida crueldade não conhece freio. No entanto, entre a sua gente, ela fora uma espécie de lufada de vigor, de valentia, pois, mal soa um alerta na fortaleza, acodem todos aos seus postos, homens e mulheres, sem uma queixa, sem um protesto, para fazerem cousas de maravilhar, como um dos enfermos da maldita doença que, vendo-se sem pelouros para o seu arcabuz, arrancou um dente que abanava e usou-o num tiro com que matou um turco.
O sacrifício das mulheres, então, deixa-o maravilhado, por vezes mesmo à beira das lágrimas, como o da viúva Bárbara Fernandes, que perdeu o filho mais velho no baluarte da Vila dos Rumes, tendo já ajudado o mais novo a morrer no próprio dia em que chegara a armada dos turcos. Sem nada poder fazer para lhe valer, vira-a suster as entranhas do moço de vinte anos que se esvaía em sangue no seu colo, enquanto o embalava, sem lágrimas, murmurando-lhe doces palavras de conforto.
Avista-a na atalaia, junto às outras mulheres, tanto casadas como solteiras, velhas e novas, com morriões63 enfiados nas cabeças, cobertas até à cinta com outras peças de couraças tiradas aos mortos, de lanças em riste, a mostrarem-se de quando em vez do alto do baluarte ou das ameias e buracos das bombardas, para que os inimigos as tomem por soldados e não se apercebam de que os portugueses são apenas aquele punhado de valentes que lhes fazem frente, recusando render-se.
Mais à frente está Isabel da Veiga, a formosa esposa do fidalgo Manuel de Vasconcelos, que a quis pôr a salvo da cobiça dos turcos, enviando-a, no início do cerco, para junto de seu pai, em Goa, numa fusta que ia, com os enfermos e feridos, levar o pedido de socorro ao vizo-rei. Enquanto o feitor da fortaleza quisera embarcar a todo o custo com o seu dinheiro (no que fora impedido por toda a guarnição que exigia o soldo que ele não pagava), Isabel recusara-se a partir.
– Que Deus não permita, senhor meu esposo, que eu me vá, donde vós ficais! – dissera-lhe diante de todos, com o gentil rosto banhado de lágrimas, esquecida da sua habitual sisudez e discrição. – Se haveis visto em mim alguma fraqueza ou descuido em vosso serviço, dizei-mo, por vossa vida, que eu me emendarei, mas não creio merecer esta áspera pena de me apartardes de vós. Enganais-vos, senhor, se cuidais que ficarei segura longe destes estrondos e perigos, porque em vossa companhia doces me são tais temores, enquanto que em Goa me matarão os pensamentos dos males e desastres a que estareis exposto. Rogo-vos, pois, que me não mateis com tal remédio e mandeis antes nossa filha para junto do avô.