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O marido cedera, comovido, e Isabel começara a tomar parte nos trabalhos da fortaleza, ajudada pela velha Ana Fernandes, esposa do físico Fernão Lourenço, não tardando a arrastar atrás de si as restantes mulheres. Além de fazerem o comer para todos os homens e de cuidarem dos feridos, acarretavam em alcofas, debaixo de fogo, pedras, terra ou o que fosse necessário para as reparações da fortaleza.

Ana Fernandes era como uma mãe para todos os combatentes, socorrendo os doentes com toda a fazenda de sua casa, quer com panos para as ataduras, quer com as suas conservas e outros comeres. Com um bordão e um terço na mão, fazia todas as noites as suas rondas pelas muralhas, encorajando os homens a defenderem a sua vida e as dos companheiros. Nos combates, quando os pelouros choviam dentro da fortaleza, em vez de se esconder punha-se ao muro de arcabuz assestado, raramente perdendo um tiro. O seu exemplo fazia com que os homens redobrassem de valor e nenhum diante dela se atrevia a mostrar fraqueza ou covardia.

António da Silveira sabe que não poderão resistir por muito mais tempo ao cerco, que dia a dia se aperta em torno deles como um garrote. Desesperou já do socorro da armada, tantas vezes prometido pelo vizo-rei e nunca cumprido. Morrerá a lutar, porque nunca se renderá nem entregará a fortaleza, enquanto no seu corpo houver um sopro de vida. Viera para a Índia em busca de glória, mas também de fortuna, no entanto acabara por gastar tudo o que tinha de seu, dando mesa e pagando os soldos aos seus homens, e quando o dinheiro se acabara, passara a pagar-lhes com a prata lavrada – trazida do reino como reserva para alguma aflição – que fizera cortar e repartir por eles. Estava assim mais pobre do que quando chegara e, quanto à glória, se lhe reconhecessem alguma, decerto já não estaria vivo para se poder gozar dela. Mas não se arrependia.

Fizera milagres para defender Diu com tão pouca gente e tão mal guarnecida. Poderia ter feito mais, se pudesse contar com alguns fidalgos e cavaleiros que tinham desertado, alguns apenas por capricho ou amuos de fidalguia ofendida, como Fernão de Morais, que se fora para Goa, porque o vizo-rei lhe não escrevera a cumprimentá-lo. Fora uma feia desculpa, de quem prezava mais o proveito do que a honra, e ele agastara-se, porque precisava de capitães experimentados na guerra, despedindo-o com azedume: Ide-vos, em boa hora, porque eu, nesta fortaleza, me contento com somente os que folgam de aqui estar. Outros seguiram-lhe o exemplo, como o seu amigo Francisco Pacheco e António Faleiro, gente com fraco coração para sofrer o perigo, os primeiros a renderem-se.

A fortaleza estava bem protegida. Mal tivera notícia da ameaça turca, reforçara tranqueiras, cavas, muros e baluartes, terminando à pressa a cisterna que enchera com mil pipas de água trazida dos poços da cidade. Quando o exército de Alucão e Coja Çofar chegaram com os seus dezanove mil homens, defendera enquanto pudera os baluartes da cidade e a ilha, apenas com algumas dezenas de homens, muitos deles bisonhos que mal sabiam manejar uma lança.

Com a vinda de Soleimão Baxá, no dia quatro de Setembro, vira-se perdido, mas uma violenta tempestade forçara o capado a levar os navios, que vinham muito destroçados, para Madrafabat, a poucas léguas de Diu, onde perdera quatro embarcações de carga. Durante a segunda vela dessa noite, surgira no céu uma grande trave de fogo cintilante, que correra da banda da cidade para se ir desfazer sobre a armada turca, o que parecera um bom presságio, para mais, tendo os rumes ficado vinte dias fora de Diu a reparar os navios, dando algum alívio aos sitiados.

A má sorte não cessara de os perseguir, encarniçada, castigando-os com as mais mofinas pragas. Primeiro, houvera um incêndio dentro da fortaleza, que queimara umas sessenta casas cheias de fazenda, dando grande ânimo aos mouros, que o viram da cidade, por crerem que lhes tinham ardido as munições. Os assaltos e bombardeamentos recrudesceram, matando-lhes muita gente e não lhes dando descanso.

Seguira-se a perda irreparável da artilharia de terra, quando decidira largar os baluartes da cidade e da ilha e mandara fustas e galeotas, de noite pelo rio, a recolher as bombardas e munições, para reforço da fortaleza; os homens assustados com a tormenta e com os tiros dos turcos fugiram para terra, deixando os seus capitães sozinhos, abandonando os barcos com todas as armas aos inimigos, que as recolheram sem trabalho. Apenas Lopo de Sousa Coutinho, apesar de ferido, lograra trazer a sua barcaça com as armas e a pólvora, porque, prevendo a fuga dos seus homens, soltara os batéis, forçando-os assim a combater e a remar para se salvarem.

Para piorar a situação, os bombardeiros usaram pólvora velha, de espingarda, imprópria para a artilharia, rebentaram com dois basiliscos do baluarte da Barra matando o condestável com outros três homens e ferindo muitos com gravidade. Por fim, chegara a fome, por não virem os barcos com provisões e, em consequência da míngua de alimentos, agravada pelo cansaço, surgira a danada pestilência.

Apesar de tudo, com a ajuda de Deus, tinham conseguido algumas vitórias, uma das principais fora a destruição de uma máquina de guerra turca, alta como uma torre, montada sobre uma barcaça, feita em madeira e cheia de salitre, enxofre, rama seca, esterco, para ser lançada a arder contra o baluarte, que acometeriam com segurança, a coberto da fumarada. Durante a noite, o capitão-mor do mar Francisco Gouveia fora com Bartolomeu Fernandes e Bastião Dias em duas fustas pelo rio assaltá-la, apesar da chuva de pelouros da bateria inimiga, deram conta do recado, deitando fogo por vários lados à barcaça, lançando os mouros que a guardavam à água e abrasando a máquina diabólica.

Uma coragem em tudo contrária à de Francisco Pacheco, o capitão do baluarte da Vila dos Rumes, que se entregara aos turcos, quando com algum esforço poderia ter defendido por mais tempo a sua posição. Como fizera, aliás, com apenas catorze homens, no primeiro ataque de Coja Çofar com três mil homens de pé e quatro mil cavaleiros, às fortificações ainda por acabar. Defendera a entrada no baluarte, com tanto vigor que lhe dera tempo para ir em sua ajuda. Coja Çofar, ferido na mão por uma bala, retirara-se e, tendo aprendido a lição, passara a respeitar os seus adversários.

António da Silveira não se achava com direito de recriminar Pacheco, pois não pudera ir em seu socorro, como ele lhe tinha rogado na carta que António Faleiro trouxera à fortaleza, com licença dos rumes. Queixava-se de lhe faltar tudo para sua defesa e provisão, de tal modo que o próprio Coja Çofar se condoera deles, aconselhando-lhes a rendição, com a promessa de que, se abandonassem o baluarte e todas as suas armas, levando apenas o que tinham vestido, Soleimão Baxá os deixaria ir para a fortaleza.

Embora Lopo de Sousa Coutinho, em presença de outros oficiais, o instasse a não crer no que lhe dizia António Faleiro nem na carta do seu capitão, porque, dois dias antes, quando fora levar-lhes munições e oferecer ajuda, Francisco Pacheco, que agora jurava estar prestes a finar-se, não o deixara subir ao baluarte, dizendo-lhe, com voz muito sã, que estava bem provido de tudo e mandara-o embora. São mais de setenta portugueses, com muitos escravos, meu capitão! Quase tanta gente como a que aqui tendes ainda capaz de pegar em armas!, protestara, indignado. Alguém acrescentara: Entre os escravos mouros, diz-se que Pacheco foi duas ou três noites falar com os capitães turcos. A ser verdade, já concertou a rendição!.

Apesar destas más suspeitas, não pudera ordenar aos do baluarte que morressem, estando ele a salvo na fortaleza. Dissera-lhes que fizessem o que Deus lhes aconselhasse, mas que não se fiassem nas promessas faladas ou escritas daqueles inimigos, que eram falsos e fementidos, não guardando verdade a ninguém, nem sequer aos seus parentes.