-mor e pela mais companhia, ao que então se respondeu que quando fosse manhã lho diriam, e que se afastassem dali até que o dia mais aclarasse, porque andavam ainda os mares tão grossos que poderia acontecer algum desastre. Logo que a estrela de alva apareceu e a manhã come
çou a ser clara vieram dois portugueses do junco de Quiay Panjão, os quais vendo António de Faria da maneira que estava metido no junco de Mem Taborda, porque o seu já era perdido, depois que souberam o sucesso da sua desventura, eles também contaram do seu trabalho que quase foi igual ao nosso, em que disseram que uma refrega de vento lhes levara três homens ao mal’ e os lançara tão longe como quase um tiro de pedra, coisa decerto nunca vista nem ouvida, E também contaram da maneira que se perdera o junco pequeno com cinquenta pessoas, e as mais delas ou quase todas cristãs, das quais sete foram portuguesas, em que entrara Nuno Preto, capitão dele, homem honrado e de grande espírito, como tinha bem mostrado nas adversidades passadas, o que António de Faria sentiu muito, Neste tempo chegou também uma das lanteas de que até então se não sabia parte, e contou também de si assaz de trabalho, e certificou que a outra quebrara as amarras com o tempo e fora dar à costa, e que à sua vista se fizera em pedaços na praia, e que de toda a gente se não salvaram mais que só treze pessoas, cinco portugueses e oito moços cristãos, os quais a gente da terra levara cativos para um lugar que se chamava Nouday, De maneira que nesta desventurada tormenta se perderam dois juncos e uma lorcha ou lantea, em que morreram passante de cem pessoas, onde entraram onze portugueses, fora os cativos.
E a perda de tudo, tanto fazenda, como prata, peças ricas, embarcações, artilharia, armas, mantimentos e munições, foi avaliada em passante de duzentos mil cruzados, com o que o capitão e os soldados todos ficaram sem terem de seu mais que o que tinham vestido. E estas pancadas tais tem esta costa da China, mais que todas as das outras terras, pelo que ninguém pode navegar seguro nela um só ano, que lhe não aconteçam desastres, se com as conjun
ções das luas cheias se não meter nos abrigos dos portos, que tem muitos e muito bons, onde sem nenhum receio se pode entrar, porque toda é limpa, tirando somente Lamau e Sumbor, que têm uns baixos a cerca de meia légua das barras da parte do sul.
Como António de Faria teve nova6 d06 cinco portugue6e6 que e6tavam cativo6, e do que bez 60bre iMo Quando aquela brava tormenta acalmou de todo, António de Faria se passou logo ao outro junco grande que tinha tomado a Coja Acém, de que então era capitão Pêro da Silva de Sousa, e dando à vela se partiu com toda a mais companhia que eram três juncos e uma lorcha ou lantea, como lhe chamam os chins, e foi surgir na angra de Nouday, para daí saber novas dos treze cativos. Mandou logo à boca da noite dois balões equipados a espiar o porto e sondar o rio, e ver o surgidouro e o sítio da terra, e que navios estavam dentro, e outras coisas necessárias à sua determinação, e mandou-lhes que tl’abalhassem por tomar alguns homens naturais da cidade, para saber deles a certeza do que pretendia e lhe darem novas do que era feito dos portugueses, porque receava que os tivessem já levado pela terra dentro. Os balões se partiram logo e às duas horas depois da meia-noite chegaram a uma aldeia pequena que estava na boca da barra, na ponta de uma calheta a que chamavam Nipafau, onde quis Nosso Senhor que negociaram tão bem que antes que fosse manhã tornaram a bordo com uma barca carregada de louça e canas-de-açúcar, que acharam surta no meio do rio, na qual vinham oito homens e duas mulheres, e um menino pequeno de seis ou sete anos, os quais sendo todos metidos no junco de António de Faria, os segurou do medo que traziam, porque lheS parecia que a todos os haviam de matar; e começando a os inquirir, nunca já lhes puderam tirar outra palavra da boca senão somente Suqui hamidau nivanquao lapopa dagatur, que quer dizer: Não nos mates sem razão, que te demandará Deus nosso sangue, porque somos pobres.
E com isto choravam e tremiam de tal maneira que não podiam pronunciar palavra nenhuma. Vendo então António de Faria sua miséria e simplicidade, não os quis por então mais importunar, mas dissimulando com eles por um grande espaço, rogou a uma mulher china cristã que ali levava o piloto, que os agasalhasse e os segurasse do medo que tinham, para que respondessem a propósito ao que lhes perguntassem, o que ela lhes fez com tantos afagos que em menos de uma hora disseram à china que se o capitão os deixasse ir livremente naquela sua embarcação assim como lha tinham tomado, que eles confessariam toda a verdade do que viram pelos olhos, e do que ouviram dizer, e António de Faria lhes prometeu o fazer assim, e lho afirmou com muitas palavras.
Então um deles, que era o mais velho e parecia ser entre eles de mais autoridade, disse:
- Não me fio ainda muito da liberalidade dessas tuas palavras, porque te estendeste tanto nelas que temo que me faltes no efeito do que elas prometem, pelo que te peço que mo jures por esta água do mar que te sustenta em cima de si, porque se mentires jurando, crê certo que o Senhor da mão poderosa com ímpeto de ira se inclinará contra ti de tal maneira que os ventos por cima e ela por
baixo nunca cessem em tuas viagens de te contrariar a vontade, porque te juro pela formosura das suas estrelas que é a mentira tão feia e aborrecida diante de seus olhos, como a inchada soberba dos ministros das causas que se julgam na terra, quando com desprezo e descortesia falam às partes que requerem diante deles o que faz a bem de sua justiça.
E jurando-lhe António de Faria com toda a cerimónia necessária a seu intento, que ele lhe cumpriria a sua palavra, o chim se houve por satisfeito e lhe disse:
- Esses teus homens por quem perguntas, eu os vi há dois dias prender na chifanga de Nouday, e botar-lhes ferros nos pés, dando como razão que eram ladrões que roubavam as gentes do mar.
Com isto ficou António de Faria suspenso e assaz enfadado, parecendo-lhe que podia ser aquilo assim; e querendo logo com muita pressa prover no remédio da soltura deles, pelo perigo que entendia que podia haver na tardan
ça, lhes mandou uma carta por um destes chins, ficando por ele, como reféns, todos os mais, o qual se partiu logo pela manhã muito cedo. E como a estes chins lhes tardava verem-se fora do em que se viam, este, que era o marido de uma das duas que foram tomadas na barca da louça e então ficaram no junco, se deu tanta pressa que quando veio ao meio-dia tornou com a resposta escrita nas costas da carta, e assinada por todos cinco, em que brevemente lhe relatavam a cruel prisão em que os tinham, e que sem falta nenhuma os haviam de matar por justiça, pelo que lhe pediam pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo que os não deixassem ali perecer ao desamparo, e que lhe lembrasse sua fé e verdade, pois como sabia, por sua causa vieram ter àquele triste estado, e outras piedades a este modo, como de homens que estavam cativos em poder de gente cruel e fraca como são os chins.
António de Faria leu esta carta perante todos e lhes pediu conselho sobre o que nisto se devia fazer, e como eram muitos os que davam seus pareceres, assim foram também muitas e diversas as opiniões, de que ele não ficou nada satisfeito, pelo que, depois de haver sobre isto uma longa altercação, vendo ele que pela variedade dos pareceres s e não tomava resolução nos negócios, lhes disse quase agastado: