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A Marquesa, de novo viúva, fora resgatada nos paços do sultão pelo governador Nuno da Cunha que, ao tomar conhecimento dos avisos que ela dera secretamente a Manuel de Sousa sobre a traição que Bahadur preparava, lhe mandara entregar todos os bens e fazenda do marido, trazendo-a com muita honra para a fortaleza, a fim de a embarcar para Goa, mercê que ela recusara.

Ali gozava de uma liberdade que não teria na capital da Índia, onde voltaria a sentir o desprezo dos reinóis, que não deixariam de ver nela uma barregã, concubina de mouros e gentios. As donas e donzelas de qualidade nunca a receberiam em suas casas (onde viviam tão encerradas e cativas como quaisquer mouras de um serralho), pois todas jurariam que antes haveriam de morrer pelas suas próprias mãos, a sofrerem a sua horrenda sorte. Ela não o fizera, preferindo a vida sem honra ao martírio, e não se arrependera da escolha.

Enquanto escrava, não rendera o seu espírito e essa ousada rebeldia conquistara-lhe tanto a admiração como o favor dos homens de quem fora cativa, que lhe pediam conselho sobre os negócios dos franges; como esposa do capitão corsário ou do língua renegado, fora tão livre como qualquer homem. Quando a horda dos rumes e mouros entrasse na fortaleza, não se deixaria apanhar viva, desta vez escolheria morrer com o gosto na boca daquela liberdade sentida em todo o seu corpo, como o mais belo dos cânticos. Apoiou a arma carregada ao muro e ficou à espera.

Era impossível resistir ao novo assalto que os turcos preparavam, tendo apenas a separá-los aquela frágil parede. Então, alguém bradou alto: Trazei lenha! Muita lenha. Fazei prestes!. Acudiram logo Isabel da Veiga e Ana Fernandes com a sua hoste de moças e matronas, como formigas diligentes, transportando à cabeça ou nas mãos cestas cheias de lenha, palha e outros materiais inflamáveis. Descarregados os madeiros sobre a parede que era muito larga, atearam um fogo intenso, cujas labaredas fizeram fugir os turcos. Remédio milagroso, que aplicaram durante doze dias, alimentando a fogueira sem cessar, de modo que nunca o inimigo logrou acercar-se de novo a esta passagem, muito menos atravessá-la.

António da Silveira mandara que lhe apanhassem dois turcos com vida para se informar do estado do exército e das intenções do capado. Soube por eles que os seus mortos passavam de oitocentos, os feridos eram mais de mil e que Soleimão Baxá queria fazer um último assalto com toda a sua gente à fortaleza a fim de a tomar antes da vinda da armada do vizo-rei que todos temiam. Satisfeito, o capitão mandara meter os cativos numa casa com guardas, dando ordens para que, nessa noite, os lançassem ao mar.

A notícia de que o baxá jurara não levantar o cerco enquanto não tomasse a fortaleza e matasse toda a gente correu célere entre os sitiados, chegando aos ouvidos das mulheres que andavam a trabalhar perto da casa onde se guardavam os prisioneiros. Maria Pita, muito arrenegada, chegando-se à porta, perguntou a um soldado que vinha a sair:

– São lá, os rumes? Que morte lhes vai dar o capitão?

O homem, sentindo-lhe a raiva na voz, disse por zombaria:

– Estão lá dentro, dona, mas não vão morrer, porque o capitão mandou-os soltar. São livres de volver ao seu arraial, quando lhes aprouver.

– Era o que mais faltava! – bradou Maria Pita, de olhos acesos de fúria. Empurrando o soldado, irrompeu pela casa dentro, como doida, estacando diante de Francisco Gouveia que, por ter lutado no mais aceso do baluarte, sofrera queimaduras no rosto, nas mãos, nos pés e em quase todo o corpo, estava tão negro de pólvora e desfigurado que ela não o reconheceu. Sem se comover com o estado lastimoso do infeliz, berrou-lhe com ódio: – Ah! Perro inimigo! Crês tu que vais sair vivo daqui? Juro-te que hás-de morrer às minhas mãos, junto com o outro cão infiel.

Num rompante, ergueu a gamela que trazia nas mãos para lhe dar com ela na cabeça. Francisco, apesar de muito fraco, conseguiu evitar o golpe, dizendo-lhe aflito:

– Os rumes estão na casa de dentro, dona, sossegai!

– Ah, cão, que me queres enganar! Olhai como o fideputa espevita o português! De nada te há-de valer a esperteza, vilão, pois te hei-de fender os cornos com esta gamela.

Ergueu de novo a bacia e só não a quebrou na cabeça do desgraçado que já não tinha forças para a afastar, porque os guardas dos turcos, acudindo à berraria, lha tiraram das mãos.

– Olhai que matais a Francisco Gouveia, dona! – disseram-lhe, a rir, vendo a sua confusão.

Sem, todavia, abrandar a ira, a mulher saiu porta fora chamando aos gritos pelas companheiras para irem falar com António da Silveira. Antes que o capitão pudesse perguntar a razão de tal ajuntamento, Maria Pita lançou-lhe o desafio, fremente de indignação:

– Como mandais vós, Senhor, dar vida a uns inimigos que tanto têm trabalhado por nos beber o sangue? Sabei que eu e estas minhas companheiras, que temos tido no cerco o mesmo quinhão de trabalho e perigo que os homens, o não consentimos, pois, antes que os liberteis, os haveremos de espedaçar com as nossas mãos. Por isso, senhor capitão, mandai que nos entreguem os rumes.

António da Silveira ficara por momentos mudo de espanto, acabando por soltar uma grande gargalhada, como há muito não tinha memória. Até as mulheres estavam do seu lado, prontas a lutar contra os turcos e a tirar-lhes a vida se necessário fosse! Agradeceu-lhes o cuidado, aquietando-as com a promessa de que os inimigos seriam justiçados65.

Dentro do galeão, de onde nunca saíra, Soleimão Baxá raivara de ver como quatro barcos tinham furado o cerco da sua armada e a sua ira virara-se contra Coja Çofar que o aconselhara a conquistar Diu, com a promessa de que a fortaleza lhe cairia nas mãos com um ou dois combates. Afinal, na maldita empresa perdera muitíssima gente, quebrando-lhe a fúria da armada, antes de se poder encontrar com o vizo-rei português, cuja vinda não tardaria e a quem ele estava a dar tempo para se fazer mais forte. Começava a sentir o desgaste dos seus homens, mas nunca pensara que um punhado de franges pudesse resistir por tanto tempo e matar-lhe tanta gente. Esta campanha era como a peregrinação a Meca: quem disser que é fácil, blasfema; quem disser que é trabalhosa, blasfema.

Se não conquistasse Diu, teria grande dificuldade em se justificar ante o sultão Kanuni Soleimão, o Legislador, por não ter cumprido o seu regimento, cujas ordens eram quebrar a armada dos franges, as suas forças do mar. Por outro lado, as provisões começavam a escassear, porque as gentes das terras em redor lhes haviam ganhado ódio, pelas manhas e abusos que os seus homens cometiam, roubando-os ou tomando-lhes as mulheres, de modo que já não lhes traziam mantimentos, preferindo dá-los aos portugueses.

A vinda do vizo-rei com uma fortíssima armada de cento e cinquenta velas com seis mil homens era já uma certeza, vira-a na carta enviada ao cão do Coja Çofar por um dos seus espiões em Baçaim, mas neste momento, já não estava preparado para enfrentá-lo. Por isso, nessa manhã, iria tentar a conquista da fortaleza, num último assalto com toda a sua gente. Se Allah, por alguma desconhecida razão, não lhe permitisse vencer, abandonaria o cerco e regressaria ao Cairo.

Precisava de dar largas à sua fúria, satisfazer a sua vingança e dar um lição aos guzarates, embora não pudesse cortar a cabeça a Coja Çofar ou a Alucão, como desejava, porque, se o fizesse, ele e os seus homens seriam massacrados por um exército cinco vezes superior ao seu, como desforra pela morte dos seus oficiais. Na falta deles mandou descabeçar António Faleiro, que não soubera dar-lhe informações precisas sobre a vinda do vizo-rei, nem sobre a gente ou o armamento que havia na fortaleza.

Coja Çofar e Alucão ficaram aliviados por verem a ira do capado cair sobre a cabeça do português e não nas suas; o seu enfadamento e os sinais de querer abandonar o cerco vinham ao encontro dos desejos da corte de Ahmadabad. A rainha e os regentes do rei-menino de Cambaia, depois de conhecerem a cobiça de Soleimão Baxá, a brutalidade do seu exército e o modo arrogante como desprezava ou desacatava Alucão e os seus oficiais, temiam que as intenções do turco não fossem tanto de os auxiliar contra os portugueses, mas de subjugar o reino e todo o Guzerate. Ansiavam por se verem livres da presença dos indesejáveis aliados, preferindo até os portugueses como o menor dos dois males; se não conseguissem conquistar Diu para el-rei de Cambaia, concertariam a paz com o vizo-rei, porque os franges se contentavam com as fortalezas nas ilhas e portos, sem desejos de conquista da terra firme.