Pêro de Faria era um veterano das campanhas da Índia, companheiro de Afonso de Albuquerque, com provas dadas nas conquistas de Goa e Malaca, da qual já tinha sido capitão durante um ano, em mil quinhentos e vinte e oito. Segundo ele mesmo dizia, sendo filho do comendador Álvaro de Faria e de uma moura de Safim, pela morte do pai e por ter ruins parentes, entrara para o serviço d’el-rei D. Manuel com moradia de bastardo, uma tença que ficava em nada, mal lhe dando para comer. Por isso viera para a Índia, onde fizera fortuna e se casara com uma gentia, de quem tinha quatro filhos, dois varões – o primogénito, Álvaro como o avô, já nomeado pelo pai para capitão-mor do mar de Malaca, e Manuel que também servia na armada – e duas moças, Leonor, esposa do fidalgo D. Pedro de Eça, e Guiomar que acabava de casar em segundas núpcias com o filho do governador Diogo Lopes de Sequeira.
Graças às recomendações dos seus dois protectores, o capitão não só o aceitara no serviço da sua gente de confiança, como prometera fazer-lhe todos os favores que pudesse, durante a sua capitania em Malaca, começando por o deixar ir na nau de trato que queria enviar à China assim que fosse provido do cargo.
Fernão teria preferido ficar em Goa, mas não achara protector que lhe assegurasse um posto na administração da cidade, o que só se conseguia com muitas peitas ou padrinhos mais poderosos e influentes do que os seus. Assim, hoje é a sua despedida de Goa, pois vai embarcar na nau de Pêro de Faria, que quer ter tudo prestes para partir mal chegue a ordem de D. Garcia de Noronha.
Desemboca finalmente no porto, onde a sua vista se perde num mar coalhado de velas. Os barcos de mercadorias mal têm lugar para descarregar os seus produtos, por causa dos cento e setenta navios da armada, que esperam ou desesperam pela ordem do vizo-rei para irem em socorro de Diu. Vê vir na sua direcção, quase correndo, o doutor Garcia de Orta, com o criado na sua peugada, a balançar o sombreiro como uma palmeira ao vento.
– Diu está livre! – grita-lhe esbaforido. – Os rumes abandonaram o cerco e el-rei de Cambaia pediu a paz!
– Então já não vamos a Diu? – pergunta, aliviado. – Se já não temos de pelejar com os rumes.
– D. Garcia de Noronha quer governar o mundo em seco! – retorque o físico, agastado. – Manda agora a armada a Diu para reconstruir a fortaleza, cuja destruição deveria ter impedido! Ouvis quão poucos tiros de salva lançam os navios? Os fidalgos não querem festejar a vitória que não lhes pertence e amaldiçoam o vizo-rei por os ter impedido de ganhar a honra de vencer a armada dos rumes. Para mais, D. Garcia gaba-se de ter feito fugir os rumes com medo da sua armada, como lhe disse António Silva numa carta. Mas os homens do catur que trouxeram a missiva contaram outra história: António Silva mentia com quantos dentes tinha na boca, porque não ousara ir a Diu, nem sequer chegara à vista das galés. A armada do turco retirou-se porque António da Silveira e o seu punhado de valentes lhe mataram muitíssima gente nos combates! – Orta riu-se, malicioso: – A história é já sabida por toda a armada e todos sentem grande prazer em zombar do Silva para danar o vizo-rei, que lhe deu muitos louvores e o despachou logo com as novas para o reino.
– Os fidalgos e capitães doeram-se muito por D. Garcia de Noronha não ter permitido que Nuno da Cunha os comandasse num ataque a Soleimão Baxá e, como se isso não bastasse, por ter recusado ao governador um navio para volver ao reino!
– Ah, portugueses, portugueses! Quão invejosos ou quão pouco amigos sois das honras dos outros! – desabafa o médico e, com um aceno distraído, desaparece no meio da multidão.
Fernão fita durante alguns instantes o largo sombreiro balouçante que parece pairar sobre as cabeças dos passantes, mas logo desvia os olhos para a armada. Tem de se apresentar sem demora a Pêro de Faria, já que a sua vida e o seu futuro dependem agora desse valente capitão.
69 Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, de Garcia de Orta.
XIII
A honra é a bússola do homem de bem
(português)
O Primeiro Cerco de Diu, Canto XX
LXXXVII. Sendo esta noite à Lua então negada,
Por interposição da opaca terra,
A participação da luz usada
Que o Sol de natureza em si encerra,
De todo se mostrou quase eclipsada
Com que mais se escurece a noite e cerra,
E quiçá que este mau e usado agouro
A partida apressar fez mais ao Mouro.
LXXXVIII. Esta noite também aquela gente
Que de Cojaçofar segue o estandarte,
Fazendo que a Cidade a chama ardente
Sinta primeiro n’uma e n’outra parte,
Também danificada e descontente
Antes de ser manhã, dali se parte,
E o lugar com grão medo desampara
Que com grã confiança antes tomara.
LXXXIX. Também nesta mesma hora dentro colhe
Com grã silêncio o ferro a imiga frota,
A vela um brando vento em si recolhe,
E lá do Roxo Mar segue a derrota.
Porém dos que feridos leva, escolhe
Os mais fracos primeiro, e em terra os bota
Dos que menos o mar sofrer podiam,
Quatrocentos ouvi que estes seriam.
A nau de Pêro de Faria fora das primeiras a chegar a Diu, escapando ao pior da tempestade que quase desbaratara a armada do vizo-rei. De certo modo, o milagre acontecera por obra e graça de Fernão Mendes Pinto a quem o doutor Garcia de Orta dera quatro sanguessugas das que tinha no hospital para sangrar os doentes. O sábio amigo metera cada uma em seu frasco de vidro, com água de nascente até dois terços de altura, fechara-os com umas tampas de respiradouros, dizendo-lhe que as bichas eram as melhores indiciadoras das mudanças de tempo, sobretudo das tempestades que se podiam sofrer durante a navegação por aqueles mares traiçoeiros. Fernão aceitara a oferta, um tanto desconfiado, embora ouvindo com atenção as suas explicações sobre o que devia observar para prever os temporais.
Em boa hora o fizera, porque, devido aos vagares que D. Garcia de Noronha levava no caminho de Goa para Diu, alguns navios, entre os quais a nau de Pêro de Faria, tinham-se distanciado da armada. O tempo começara já a mudar e, cerca do golfão de Diu, as sanguessugas que no início da viagem se mantinham enroladas no fundo do frasco, em sinal de bom tempo, ao terceiro dia começaram a nadar de um lado para o outro, anunciando o vento que não tardara a soprar. Assim, quando as vira amarinhar pelas paredes do frasco, a contorcer-se loucamente fora da água, como se quisessem fugir, Fernão percebera que, em breve, iria cair sobre a nau uma violentíssima tempestade e correra a prevenir o capitão. Pêro de Faria não perdera tempo e navegara a todo o pano para Diu, onde chegara já debaixo de intensa chuva e ventos rijos, porém com a nau incólume.
Ao desembarcarem em Diu, mal podiam crer nos seus olhos, vendo os baluartes todos por terra e os muros da fortaleza tão esventrados que se podia entrar neles como por uma nau. Fernão sentiu um arrepio de medo, de mistura com o alívio de não ter passado por tamanhas vicissitudes como as que atestavam aquelas ruínas. Cada um dos defensores, homem ou mulher, era digno de registo nas crónicas do reino, merecedor de real recompensa, contudo, sendo a sua pátria ou os que a regem tão ingratos para com os seus filhos de maior valia, pouco haveriam de receber de prémio ou galardão. A sua única recompensa seria o terem escapado com vida daquele inferno.
Sete dias mais tarde, foram chegando os navios da armada que o temporal dispersara por muitas partes; a maioria trazia rombos no casco, os mastros quebrados, as velas rotas, a artilharia perdida, lançada ao mar como lastro. Os homens desembarcaram a maldizer e a praguejar contra o vizo-rei, cuja ganância os fizera perder o bom tempo e a muitos companheiros a fazenda e a vida: