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- Eu, senhores e irmãos meus, tenho prometido a Deus com juramento solene de me não ir daqui até não haver à mão estes pobres soldados e companheiros meus, por qualquer via que seja, ainda que sobre isto aventure mil vezes a vida, quanto mais com despesas de minha fazenda que eu estimarei muito pouco, pelo que, senhores, vos pe

ço a todos muito, muito, muito, por mercê, que ninguém me contrarie isto de que tanto depende minha honra, porque juro à casa de Nossa Senhora de Nazaré que qualquer que o contradisser me terá por tanto seu inimigo, quanto eu entendo que o será de minha alma quem for contra isso.

Ao que todos lhe responderam que o que sua mercê dizia, isso era o melhor e o mais acertado, e que para sua consciência por nenhum caso deixasse de o fazer assim, porque eles todos o acompanhariam até porem as vidas por isso. Ele lho agradeceu então muito e os abraçou a todos

com o barrete n a mão e lágrimas nos olhos, e muita cortesia nas palavras, e de novo lhes tornou a certificar que pelo tempo em diante lhes satisfazia por obras o que então lhes prometia só com palavras, com o que todos ficaram de todo conformes e muito satisfeitos.

Como António Faria e6creveu tuna carta ao mandarim de Nouday 60bre o negócio de6te6 cativ06, e a re6po6ta que teve a ela, e o que ele tez 60bre i660

Tornada esta resolução, se pôs logo em conselho que maneira se havia de ter no proceder deste negócio, e se assentou que a primeira coisa fosse fazer-se pacificamente diligências com o mandarim, mandando-lhe pedir aqueles cativos, e prometer-lhe pelo resgate deles o que fosse razão, e que com a sua resposta se determinaria o que se havia de fazer. E com isto se fez logo uma petição conforme o estilo com que no auditório se costuma falar, e a mandou António de Faria ao mandarim, por dois chins dos que se tomaram, os que pareciam de mais respeito, e

com ela lhe mandou um odiá que valia duzentos cruzados, parecendo-lhe que entre gente de primor aquilo bastava para não querer mais, o que foi muito pelo contrário, como logo se verá.

Partidos os chins que levavam a petição e o presente, tornaram logo ao outro dia com a resposta escrita nas costas da petição, a qual era um despacho que dizia desta maneira:

- Venha a tua boca diante de meus pés, e depois de seres ouvido, te proverei se tiveres justiça.

Vendo António de Faria o mau despacho do mandarim, e a soberba e desconcerto das palavras dele, ficou algum tanto triste e melancólico porque entendeu daquele princípio que já havia de ter trabalho em libertar aqueles cativos, e discutindo este negócio particularmente com alguns que para isso foram chamados, não deixou ainda de haver algumas diversidades de pareceres, mas no fim delas se veio a concluir que todavia lhe tornasse a mandar outro recado, em que com mais eficácia lhe pedisse os seus homens, e que lhe daria por eles dois mil taéis em prata e fazenda, e senão que falasse muito claro e o desenganasse, que se não havia de ir dali até que lhos não mandasse, porque quiçá certificado desta determinação, o medo lhe faria fazer o que pelas outras vias lhe negava, tanto mais que pela via do interesse poderia ser que se rendesse.

Os mesmos dois chins se tornaram a partir logo com este recado escrito em uma carta cerrada, como de uma pessoa a outra, sem cerimónia de petição nem outras vaidades que eles entre si nestes casos gentilicamente costumam, para que visse o mandarim na isenção da carta, quão determinado estava no que lhe dizia. Porém, antes que vá mais por diante, quero dizer só dois pontos do que ia na carta, que foram causa de este negócio se danar de todo, os quais foram: um, dizer-lhe António de Faria que ele era um mercador estrangeiro, português de nação, que ia de veniaga para o porto de Liampó, onde havia muitos mercadores residentes na terra com suas fazendas que pagavam seus direitos costumados, sem nunca fazerem nela roubos nem males como ele dizia; e o outro ponto foi dizer-Ihe que porque el-rei de Portugal, seu senhor, era com verdadeira amizade irmão de el-rei da China, vinham eles à sua terra, como também os chins por esta causa costumavam ir a Malaca onde eram tratados com toda a verdade, favor e justiça, sem se lhes fazer agravo nenhum. E ainda que o mandarim ambos estes pontos não sofresse, todavia este derradeiro de dizer que el-rei de Portugal era irmão de el-rei da China, tomou tão a mal

‘que, sem ter mais respeito a coisa alguma, mandou açoitar os dois que levaram a carta, e cortar-lhes as orelhas, e os tornou assim a mandar com a resposta para António de Faria, escrita num pedaço de papel roto que dizia assim:

- Bareja triste, nascida de mosca encharcada no mais sujo monturo que pode haver em masmorras de presos que nunca se limparam, quem deu atrevimento à tua baixeza para parafusar nas coisas do céu? Porque mandando eu ler a tua petição, em que, como a senhor me pedias que houvesse piedade de ti que eras miserável e pobre, à qual eu, por ser grandioso já me tinha inclinado e estava quase satisfeito do pouco que davas, tocou no ouvido de minhas orelhas a blasfémia de tua soberba, dizendo que o teu rei

era irmão do filho do Sol, leão coroado por poderio incrível no trono do mundo, debaixo de cujo pé estão submetidas todas as coroas dos que governam a terra com real ceptro de mando, servindo-lhe continuamente de brochas de suas alparcas, esmagados na trilha do seu calcanhar, como os escritores das bralas de ouro testemunham na fé de suas verdades em todas as terras que as gentes habitam. E por esta tamanha heresia mandei queimar o teu papel, representando nele por cerimónia de cruel justiça a vil estátua de tua pessoa, como desejo fazer a ti também por tamanho pecado, pela qual te mando que logo e logo sem mais tardar te faças à vela, para que não fique maldito o mar que em si te sustenta.

Acabando o intérprete (que lá se chama tansu) de ler a carta e declarar o que ela dizia, todos os que a ouviram ficaram assaz corridos, e António de Faria mais corrido e

. afrontado que todos: e estiveram um grande espaço algum tanto confusos, porque de todo perderam as esperanças de resgatarem os cativos. E discutindo o desconcerto das palavras da carta e o mau ensino do mandarim, se determinou no fim de tudo que saíssem em terra e acometessem a cidade, porque Nosso Senhor os ajudaria conforme à boa tenção com que o faziam, e para efeito disso se ordenaram logo embarcações em que saíssem de terra, que foram quatro barcaças de pescadores que aquela noite se tomaram. E fazendo-se alarde da gente que podia haver para este efeito, se acharam trezentos homens, de que setenta eram portugueses e os mais escravos e marinheiros, com a gente de Ouiay Panjão, dos quais cento e sessenta eram arcabuzeiros, e os mais com lanças, e chuças, e bombas de fogo, e outras muitas maneiras de armas necessárias para o efeito deste negócio.

Como António de Faria

acometeu a cidade de Nouday e o que lhe aconteceu

Ao outro dia quase manhã clara, António de Faria se fez à vela pelo rio acima com três juncos e a lorcha, e com as quatro barcaças que tinha tomado, e foi surgir em seis braças e meio pegado com os muros da cidade; e amainando as velas sem salva nem estrondo de artilharia, pôs bandeira de veniaga ao costume dos chins, para que com as mostras destas pazes lhes não ficassem nenhuns cumprimentos por fazer, ainda que soubesse que, como isto da parte do mandarim estava danado, nenhuma coisa daquelas lhes havia de aproveitar. Daqui lhe tornou a mandar outro recado com promessa de mais interesse pelos cativos, e cumprimentos de muitas amizades, com o que o perro se indignou de tal maneira que mandou aspar o coitado do chim e mostrá-lo do muro a toda a armada, com a qual vista António de Faria acabou de perder as esperanças que ainda alguns lhe faziam ter. E crescendo com isto a cólera aos soldados lhe disseram que pois tinha assentado sair em terra, não esperasse mais, porque seria dar tempo aos inimigos para juntarem muita gente. Ele, parecendo-lhe bem este conselho, se embarcou logo com todos os que estavam determinados para este feito, que já estavam presentes para isso, e deixou recado nos juncos que não deixassem nunca de atirar aos inimigos e à cidade, onde vissem maiores ajuntamentos de gente; porém isto havia de ser enquanto ele não andasse travado com eles.