Quando Fernão recebe em cheio no rosto o vinho de um pichel lançado com ódio, António de Azevedo diz, forçando um sorriso, antes que algum dos companheiros puxe da arma:
– Nada de brigas, amigos, que são quatro contra um. Tratai de rir com eles, inda que nos dêem bofetadas. Juro-vos que hão-de pagar caro esta afronta!
Fazendo das tripas coração, sofrem as injúrias, com que os bragantes não cessam de os mimosear, como se fossem graciosos cumprimentos, rindo e chalaceando com os mouros amigos, dizendo-lhes para não se agastarem, pois tudo era feito por zombaria, sem maldade.
– São horas de volver à cidade – atalha o capitão, para pôr fim à provocação, ordenando aos escravos que levantem o acampamento e levem para a fortaleza o javali morto.
Com medo de alguma cilada dos rumes, decidem seguir para a cidade em companhia dos mouros, que se mostram muito anojados daquele mau encontro, desculpando-se por não terem lutado para os defenderem.
– Seríamos todos mortos, eles são muito mais – consola-os Azevedo. – Contudo, este incidente não será esquecido.
Os rumes, vendo-os partir na companhia dos mouros, desistem de os seguir, tomando outro caminho, sempre em grande galhofa, a chamar-lhes cobardes, mulheres barbadas e outras injúrias. O capitão manda o seu moço de confiança atrás deles a espiá-los, até à Vila dos Rumes, para descobrir onde moram.
De regresso ao baluarte, António de Azevedo conta a outros companheiros a injúria que tinham sofrido e logo quatro deles se lhes juntam para a vingança.
– Se não lhes dermos uma lição, nunca mais teremos sossego em Diu.
– Se virem o desaforo dos rumes quedar sem castigo, os mouros da cidade ficarão tão soberbos como antes do cerco e matar-nos-ão ao menor pretexto.
Nessa tarde, os oito vestem saios de malha de aço por baixo das roupas e, bem armados, ficam à espera que o vigia lhes mande aviso da vinda dos rumes à cidade, como é seu costume. A espera é recompensada com a chegada de sete arruaceiros à praia, para tomarem os batéis que fazem a travessia para a cidade, onde vão festejar com os seus amigos a surriada que fizeram aos portugueses.
– Ide embarcar com eles – diz Azevedo aos quatro companheiros que os rumes não conhecem. – Durante a travessia fazei os remeiros levar o barco ao cubelo, nem que para isso tenhais de usar da força, porque nós estaremos prestes para os fisgar.
Os rumes embarcam com alguns mercadores mouros e, atrás deles, entram os quatro portugueses, como sempre fazem os da fortaleza quando pretendem ir à cidade. Ao mesmo tempo, António de Azevedo, Fernão e os companheiros da montaria vão tomar outro batel, um pouco mais acima do rio, para que os turcos, sobretudo o chefe que esteve no mato, não desconfiem da cilada.
A meio da travessia, os portugueses ordenam aos remeiros que os deixem no baluarte do mar e os homens apressam-se a obedecer, porém, os rumes logo lhes bradam que sigam para a cidade. O barqueiro, cheio de medo por se ver entre dois fogos, desculpa-se de ser forçado a obedecer aos portugueses para que estes lhes não façam mal.
Os turcos põem-se de pé, a arregaçar as mangas e a torcer os bigodes de fúria, soltando grandes gritos e pancadas nos remeiros para os obrigarem a seguir o seu caminho. Os portugueses desembainham as espadas e lançam-se sobre eles em defesa dos remeiros, desferindo cutiladas que os rumes aparam e devolvem com igual destreza.
Cheios de terror por se verem metidos à força em tão medonha briga que faz oscilar o batel como em dia de temporal, os mouros atiram-se ao mar e António de Azevedo, que entretanto se acercara com o seu barco, grita-lhes que nadem para o baluarte sem medo, que ninguém lhes fará mal, porque a pendência não é com eles. Emparelhados os batéis, o capitão salta para o dos rumes, seguido por Fernão com os dois companheiros.
– Agora as partes são mais conformes – brada-lhes, fazendo sinal ao português que acabara de receber uma cutilada para recuar e, olhando o rume que encabeçara a arruaça na montaria, aponta para si e para os seis companheiros, a mostrar-lhe que não quer qualquer vantagem.
O combate não é demorado, saldando-se por algumas feridas sem grande gravidade dos portugueses e pela morte de cinco rumes, além de dois prisioneiros – o chefe do bando e um dos que tinha estado na caçada. Azevedo leva-os para o baluarte, onde já se acham os mouros recolhidos do mar pelos seus homens. O capitão desculpa-se por lhes ter causado tamanho susto e conta-lhes a razão daquela briga, as injúrias que os seus amigos portugueses e guzarates haviam recebido do bando de arruaceiros que assim os provocara para ter ocasião de os matar.
– Foi ou não assi? – pergunta ao rume na língua franca.
– Sim – respondeu o outro, cheio de soberba. – Pena foi não teres então falado, que logo ali mo pagarias.
– Nós éramos só quatro portugueses e vós quinze velhacos – retorque-lhe António de Azevedo, irado com a desfaçatez. – Por isso o pagarás agora.
A uma ordem sua, os escravos negros matam-no com uma machadada na cabeça e fazem-no em postas que metem em salmoura, como de conserva, numa pipa velha. O capitão manda-os deitar as tripas ao rio, mas recomenda que lhe guardem a fressura.
– Faz-me uma assadura desses fígados – ordena ao negro que o matara, quando terminam a chacina – e traz-mos logo aqui, que os queremos comer. O combate fez-nos fome.
O escravo corta o fígado em vários nacos que enfia num espeto e leva para a cozinha. Os guzarates, horrorizados, pedem licença para se retirarem, porém, Azevedo diz-lhes, num tom que não admite recusa, desejar muito que eles assistam até ao final daquela sentença, para verem como ele exerce uma justiça exemplar.
Na cozinha, com muitos frouxos de riso pelo logro que fazem aos mouros, os negros deitam fora o fígado do turco, segundo as ordens secretas do capitão, substituindo-o pelo do porco, que assam no espeto e levam, junto com outros comeres, à mesa onde António de Azevedo está sentado com os sete companheiros para almoçar. Todos comem da espetada de fígado, zombando dos rumes e bebendo à vitória.
Terminado o repasto, o capitão deixa sair os guzarates e com eles o rume sobrevivente, mais morto do que vivo, para irem contar o que tinham visto. Durante dias não se falou de outra coisa, tanto na cidade como na Vila dos Rumes, e foi tal o espanto e horror que ninguém mais ousou meter-se com qualquer português, mesmo que fosse sozinho pelos matos ou andasse de noite por becos e travessas escusas.
Sendo os portugueses tão poucos, para mais espalhados por tanto mundo, a viver no meio de tantos inimigos traiçoeiros, se queriam sobreviver, não só precisavam de se impor pela força, como ainda deviam mostrar-se piores do que eram, fazendo correr muitas histórias de vinganças e castigos ferozes como aquele, para que os temessem e não ousassem causar-lhes danos.
Na nau de Pêro de Faria, ao lado do valeroso D. Cristóvão da Gama – que vai ao encontro do irmão D. Estevão, o capitão de Malaca cessante –, Fernão Mendes Pinto vê Diu perder-se na distância e sente-se ufano por ter participado naquela mirabolante aventura, se bem que a reputação de comedor de homens não seja fama de que propriamente se possa orgulhar.
70 Proibidas, por serem monopólio da Coroa.
71 Civilizada.
LIVRO III
MAR AUSTRAL
SAMATRA
AUREA CHERSONESO
Suvarnabhûmi ou a Terra do Ouro72
Está a ilha posta e encaixada no mar, como uma cunha, entre esta terra firme do Malaio, e todas as outras costas, e ilhas de Java, e outras muitas, como Ternate, Timor e Bornéu; as de Banda e as de Maluco e outras que para esta parte do sul lá se navegam, assim dos que vêm da Índia para Malaca, que todos vêm pela banda de dentro de Samatra, e a terra firme, que será de terra a terra doze até catorze léguas de travessa ; porque pela outra parte de fora atégora não é navegada, nem dos naturais da terra, nem de outros peregrinos ou estrangeiros.
Entra-se para dentro destoutra terra toda por um boqueirão que as águas vêm fazer, e onde se ajuntam, e apanham, onde se esgota a terra, e fenece a parte do sul de Samatra, e começa a correr para a do norte, defronte de Sunda: a que se faz esta boca, tendo uma goela em Samatra e outra na ponta da ilha de Java.