A parte de Sunda, de que o boqueirão toma sua denominação, e apelido, será a boca na entrada de largura de três léguas, ou pouco menos, e com muitas ilhas no meio, sem conto, altíssimas, e de muito espesso e grande arvoredo, e outros ilhéus infinitos.
Correm aqui as águas tanto, e saem com tamanho ímpeto e fúria para o mar oceano, donde nós vínhamos, que parece cousa monstruosa de ver, e incredível muito mais de contar.
(Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo, escrita por
Henrique Dias, em no ano de 1560)
72 Na Peregrinação, Fernão Mendes Pinto narra as suas aventuras nestes mares nos capítulos XIII a XXXII.
I
O que vai na frente junta tesouros, o que vai atrás procura-os em vão
(maori)
Carta de Afonso d’Albuquerque a El-Rei D. Manuel, 1 de Abril de 1512:
Também vos vai um pedaço de padrão73 que se tirou de uma grande carta de um piloto de Java, o qual tinha o Cabo da Boa Esperança, Portugal e a terra do Brasil, o Mar Roxo e o Mar da Pérsia, as ilhas do cravo, a navegação dos chins e gores, com suas linhas e caminhos direitos por onde as naus iam, e o sertão74, quais reinos confinavam uns com os outros.
Parece-me, senhor, que foi as melhor cousa que eu nunca vi, e vossalteza houvera de folgar muito de a ver; tinha os nomes por letra java e eu trazia [um] jau que sabia ler e escrever; mando esse pedaço a vossalteza, que Francisco Rodrigues emprantou sobre outra, donde vossalteza poderá ver verdadeiramente os chins donde vêm e os gores, e as vossas naus o caminho que hão de fazer pera as ilhas do cravo, e as minas do ouro onde são, e a ilha de Java e de Bandam, de noz moscada e maça, e a terra d’el-rei do Sião e assi o cabo da terra da navegação dos chins, e assi pera onde volve, e como dali adiante não navegam.
A carta principal se perdeu na Frol de la Mar: com o piloto e com Pêro d’Alpoim pratiquei o sentir desta carta, pera lá saberem dar razão a vossalteza; tende este pedaço de padrão por cousa muito certa e muito sabida, porque é a mesma navegação por onde eles vão e vêm: mingua-lhe o arcepedego das ilhas que se chamam Celate, qua jazem entre Java e Malaca.
Pêro de Faria chegara a Malaca uns meses antes de D. Estêvão da Gama terminar o seu tempo na capitania e seguir para Goa como governador do Estado da Índia. Embora D. Vasco da Gama o tivesse escolhido para mestre de armas deste seu segundo filho e Faria prezasse muito o seu pupilo, dez anos volvidos, por razões que Fernão Mendes desconhecia, essa amizade tinha desaparecido e, se bem que ambos o dissimulassem em público, andavam de candeias às avessas, como soe dizer-se. Para não tropeçarem um no outro, na fortaleza, Pêro de Faria, que já ocupara o mesmo posto no ano de vinte e oito, alojara-se com toda a sua gente em casa própria, onde começara a ser visitado pelos embaixadores dos reinos vizinhos que queriam dar as boas-vindas ao novo capitão de Malaca e renovar antigas alianças.
Um desses embaixadores trouxera da ilha de Samatra um rico presente de paus de águila e calambá, cinco quintais de benjoim, com uma carta de Timorraja, o rei dos Batas, a pedir ajuda de homens e armas, contra o vizinho reino de Achem, inimigo seu e dos portugueses. Pêro de Faria não desperdiçara a ocasião de favorecer os seus próprios negócios, determinando logo enviar-lhe uma embaixada com a sua resposta, um mero pretexto para levar a cabo o que verdadeiramente pretendia: espiar a terra, fazer tratos com os seus mercadores e obter do aflito soberano benefícios nos tributos das mercadorias.
Não tendo ainda tomado posse da capitania, Faria fretara em seu próprio nome um jurupango – uma embarcação malaia semelhante a uma caravela pequena –, que carregara de mercadorias no valor de dez mil cruzados, escolhendo para seu feitor um mouro de Malaca da sua confiança, bom conhecedor dos mercados, que haveria de as vender em Samatra com muito proveito, conforme lhe assegurara. Em paga dos serviços prestados por Fernão na reconstrução da fortaleza de Diu, o capitão oferecera-lhe o cargo de embaixador e espia, que ele agarrara com ambas as mãos.
– Fernão Mendes – dissera-lhe –, entendes quão importante é esta amizade dos batas para o serviço d’el-rei nosso senhor e segurança desta fortaleza, que há dois anos sofreu um grande assalto das forças de Achem? Tens de concertar bem esta aliança com Timorraja, porque, com a sua amizade e os tratos que ele nos propõe em troca de pelouros e pólvora, o rendimento da nossa alfândega crescerá muito, tal como o proveito de todos os portugueses que por estes mares mercadejam.
É com essa missão que ele atravessa agora o golfo de Malaca a caminho da grande ilha, cujos costumes e falta de polícia o enchem de pavor. O reino de Pedir fora o primeiro lugar de Samatra a ser visitado pelos portugueses, no ano de mil quinhentos e nove, quando Diogo Lopes de Sequeira ali estivera a concertar pazes com o seu rei, deixando um padrão com as armas de Portugal em testemunho da sua aliança. Depois da conquista de Malaca, Afonso de Albuquerque fora a Pacem com o mesmo propósito pacífico, tendo o rei permitido a construção de uma fortaleza. Quando três anos mais tarde os achens conquistaram aqueles reinos, os dois soberanos derrotados pediram asilo aos portugueses, homiziando-se em Malaca com as suas famílias e a fortaleza foi desmantelada.
Já é sina de Fernão receber alvíssaras envenenadas e esta viagem é um risco demasiado grande para o pouco proveito que poderá conseguir, pois toda a sua fortuna não passa de uns míseros cem cruzados que mal lhe darão para comer, quanto mais para fazer tratos e enriquecer! A menos que a sorte fugidia o bafeje e ele descubra em Samatra um dos dois mistérios que mais cobiça têm despertado aos portugueses da Índia: uma carta de marear com a derrota certa para a Ilha do Ouro, como a que Afonso de Albuquerque possuíra, e o lugar nas costas de Pedir onde se afundou a sua nau, carregada com os mais ricos despojos da conquista de Malaca, destinados a el-rei D. Manuel.
O fascínio que sente por ambos os mistérios não se pode comparar a nenhuma outra coisa no mundo; chegara a tomar por um presságio de boa fortuna ter embarcado para a Índia na nau que arvorava o nome Frol de la Mar, em homenagem ao grande conquistador. O jurupango cruza precisamente as águas das costas de Aaru onde, segundo lhe disse o feitor mouro, a nau do governador se afundou e é com profunda emoção que ele recorda a história contada por Pêro de Faria do naufrágio e do tesouro que aguarda no fundo do mar que alguém o vá buscar ou uma onda da altura de uma torre, assaz frequente naqueles mares, o lance nas praias, como costumam fazer aos barcos que apanham no mar.
Afonso de Albuquerque saíra de Malaca com três naus e um junco, em Dezembro, em plena monção de noroeste e esperava chegar sem novidade a Cochim. A Frol de la Mar, a sua capitânia, estava muito velha e metia água, porém, decidira dar o exemplo e embarcara nela e não na Trindade de Pedro de Alpoim, ao ver que toda a gente queria ir nos outros navios por medo de naufragar.
Deixara o grosso dos homens no serviço quer da fortaleza quer da armada, porque Mahamed, o rei de Malaca, que ele expulsara do trono e da cidade, logo que se recompusesse, voltaria com o seu exército para recuperar o que perdera. Enviara também cento e vinte homens com António de Abreu a descobrir as ilhas do cravo e das especiarias, que vinham na preciosa carta de marear que o piloto jau lhe vendera, sobretudo, a maior e mais longínqua, inominada, mas que ele suspeitava tratar-se da tão cobiçada Ilha do Ouro.
Levava, por isso, na sua pequena frota, apenas cem portugueses, os oficiais com os matalotes necessários para o manejo e defesa das quatro embarcações, os feridos e doentes; na Frol de la Mar iam os objectos e jóias mais preciosas que achara nos paços de Mahamed, destinados a el-rei D. Manuel, assim como o fabuloso presente de ouro e pedras preciosas do embaixador do Sião, que viera assentar pazes com o rei de Portugal, além de um bando de meninas e meninos formosíssimos, cada um de sua raça, das muitas que havia naqueles reinos, para escravos da rainha D. Maria.