A capitânia seguia mais cerca de terra, em conserva com a Trindade, que lhe prestaria auxílio em caso de necessidade, enquanto a terceira nau, a Enxobregas, tinha ordens de nunca perder de vista o junco do capitão Simão Martins, que levava uma boa parte do saque da cidade – o quinto devido a el-rei D. Manuel, mais a sua própria parte, que esperava vender com proveito na Índia; a tripulação, sendo quase toda de jaus, não o deixava tranquilo, pois, se lhes dessem ocasião não hesitariam em matar à traição os portugueses, que eram apenas doze, para se apoderarem do barco e fugirem para Java com a riquíssima carga. Esse pressentimento revelou-se uma profecia, quando os escravos se amotinaram e roubaram o junco, depois de matarem o capitão Simão Martins e oito portugueses; do massacre escaparam quatro marinheiros num batel, que viveram para contar a sua história.
À vista das costas de Aaru, como o tempo ficou tempestuoso, tanto Alpoim como Albuquerque procuraram tomar o porto de Pedir, mas o mar, de tão levantado, não lhos permitiu. Ao anoitecer a tormenta cresceu medonha com as ondas a varrerem os conveses com fúria, destruidora, de que apenas escapou um dos batéis. A Frol de la Mar metia tanta água que as bombas não a podiam escoar e o governador mandou cortar os mastros, o que pouco adiantou, porque a nau parecia um escolho perdido no mar.
Alguém alvitrou que se fizesse uma jangada porque ali não tinham salvação, no que Albuquerque logo consentiu para manter toda a gente ocupada com a tarefa de pregar tábuas e atar madeiros, sem tempo para pensar na morte ou soltar gritos de desespero. Um trabalho assaz difícil pela grandeza das ondas que desabavam no tombadilho como pedregulhos, arrastando consigo os homens que não estavam amarrados por cabos.
Fosse por descuido do piloto ou pela força das ondas, a Frol de la Mar foi lançada contra uns baixios partindo-se ao meio, com a violência do embate. A proa desfeita afundou-se com muita gente, mas a popa, com o batel, ficou assente nas pedras, a descoberto do mar, pondo a salvo Afonso de Albuquerque com os portugueses que estavam junto da jangada. Antes que o mar a desfizesse, o governador mandou alguns homens pô-la ao mar.
– Defendei com lanças e espadas a entrada dos negros com as trouxas dos seus senhores – ordenou-lhes, vendo os escravos carregados a prepararem-se para o assalto à jangada e ao batel. Bradou ao mestre: – Fazei embarcar primeiro os doentes no batel, sem emburilhos ou trouxas que tirem lugar às pessoas.
A ouvir os protestos dos que queriam salvar o espólio ganho na tomada de Malaca, disse-lhes, começando a despir-se:
– Eu vou meter-me na jangada em ceroulas e jaqueta, meus amigos, portanto, ficai certos que de outro modo nela não entrareis!
Atou um cabo à cintura, desceu para o batel, com todos os portugueses, rumou para a jangada, onde chegaram a salvo. Não consentiu o governador que nenhum negro escravo, homem ou mulher, subisse à jangada, ordenando que os deitassem ao mar às lançadas ou com pancadas dos remos, quando se queriam segurar nela. Salvou somente uma menina, filha de uma sua escrava que lha entregou, único despojo que trouxe da nau, de todos os tesouros que nela havia, ao contrário de muitos que traziam o corpo cheio de jóias de ouro e pedraria.
– Se esta inocente se pegou a mim para se salvar, eu tomo a inocência dela por minha salvação – disse, e esteve sempre de pé, na jangada, com ela nos braços.
Na noite de breu, em luta com as vagas e os ventos, não se podiam acender fogos de aviso, por isso, o junco e a Enxobregas nada viram, por irem no alto mar, ocupados com a sua própria salvação. Pêro de Alpoim ouviu os gritos Senhor, Deus de misericórdia!, viu a nau perdida à luz dos relâmpagos e coriscos que explodiam nos céus, contudo só na manhã seguinte logrou acercar-se e salvá-los com muito esforço e perigo.
Seguiram para Cochim, onde os inimigos do governador, julgando-o perdido, festejavam a sua morte, mas o resto da população recebeu-o em triunfo. Albuquerque sentiu muito a perda de dois leões de ferro dourados, que o rei de Malaca tinha às portas dos seus paços, por serem um presente do rei da China. Não eram preciosos como a maioria dos objectos que vinham na nau, porém, ele trouxera-os, por honra, como testemunho do seu triunfo.
– Ao perdê-los, além de ter ficado sem a minha fazenda, perdi também a minha honra! – ouviram-no dizer, com muita paixão. – Porque eu não queria em minha sepultura outro letreiro nem outra memória dos meus trabalhos, senão aqueles leões.
Em Cochim escreveu ao capitão de uma caravela que ia para Malaca, rogando-lhe que fosse ao sítio do naufrágio, com alguns pescadores de pérolas de Samatra, para mergulharem à procura dos dois leões e, se os achassem, os tirassem de lá por todos os meios que pudessem, que ele lhe pagaria todos os custos.
Não os acharam, nem toparam com os castelos de madeira dos elefantes do rei de Malaca, nem com os seus andores forrados a brocado e a ouro; tão-pouco descobriram a tripeça de assentar, de quatro pés, em que a rainha da Malaca comia ou os quatro leões ocos para perfumes da câmara do rei, em ouro, incrustados de magníficas pedras preciosas, para já não falar dos cofres de moedas de ouro, prata e diamantes.
Bastaria um só desses objectos para fazer do seu descobridor um homem rico e justificar os riscos dessa viagem. Fernão, que não despegara ainda os olhos do lençol de água, procurando divisar no fundo o brilho denunciador do tesouro, suspira desconsolado, pois o único fulgor que vê é o reflexo do sol no mar que ondula docemente. A Ilha do Ouro começa a parecer-lhe, afinal, mais fácil de alcançar75.
Ao abordar a peregrinação de Fernão Mendes Pinto pelos mares austrais, que os portugueses começaram a descobrir, mal Afonso de Albuquerque conquistou Malaca, a narradora volta a alertar o seu leitor para a necessidade de conciliar os tempos e lugares visitados. Este Mar Australis é um caso particularmente espinhoso, porque, Fernão Mendes Pinto faz pelo menos duas viagens importantes a Samatra, em diferentes épocas.
Pouco depois da sua chegada a Malaca, no ano de mil quinhentos e trinta e nove, é enviado duas vezes por Pêro de Faria, como embaixador, aos reinos de Bata e Aaru, onde testemunha acontecimentos quase idênticos, de modo que a presente narradora, para não cansar o seu leitor com uma narrativa demasiado extensa, limitará o seu relato aos episódios do reino de Batak.
Alguns anos mais tarde, Fernão voltará a estes mares, à ilha de Java e navegará ao longo da corda de ilhas que se estendem desde Samatra até Timor e Papuas, em frente das quais se acha a então suposta Ilha do Ouro, a Terra Australis, já antes visitada e carteada por vários exploradores portugueses. Entre estas viagens fez outras em outros mares, contadas mais adiante nesta narrativa, por isso, se o leitor aceitar os saltos no tempo, a contadora desta sua saga poderá, de consciência tranquila, narrar-lhe também algumas viagens anteriores que, embora passadas em tempos diferentes, têm em comum a vivência da guerra no mesmo espaço geográfico e a matéria do sonho na busca da Ilha do Ouro, a que também Fernão ia mandado por ordem do Capitão de Malaca.
Embora vá na pele de embaixador aos reis de Bata e de Achem, a sua verdadeira missão consiste em espiar ambos os reinos, em particular, colher todas as informações que possa sobre a derrota para a Ilha do Ouro. Como em Samatra há minas desse precioso metal, um segredo muito bem guardado merecedor dos piores castigos se for apanhado a espiar, bastar-lhe-á cometer um deslize ou desrespeitar qualquer tabu, para ser condenado à morte.
– El-rei D. João insiste em saber notícias da Ilha do Ouro – dissera-lhe o capitão, em privado, depois de ter despedido com muitas honras o embaixador Aquarem Dabolai, que lhe trouxera a carta do rei dos Batas, seu cunhado. – Ele quer fazer como o pai, que mandou barcos e gente ao descobrimento da Terra Australis, com fé nas informações que eu e outros capitães lhe escrevemos, muito à puridade, a fim de não despertar suspeitas nem cobiça às outras nações, sobretudo Castela que nos espia.