– Os nossos descobriram a Ilha do Ouro? – Faria rira-se do seu espanto, do brilho cobiçoso dos seus olhos. – Cuidei que fosse imaginação das gentes do mar! A ilha é mesmo real? Quem foi que a descobriu?
– Sabemos que a ilha jaz a sul, da parte deste reino dos Batas, à mesma declinação de Samatra ou Java, contra Timor. Ficámos a conhecer a sua derrota, há mais de vinte anos, com as viagens de descobrimento das ilhas de Banda e Molucas. Temos debuxos das suas costas, em cartas de marear separadas, mas quem por lá anda guarda segredo com medo dos espias e também de causar uma corrida ao ouro da ilha por todos os que andam nos tratos ou no corso.
– Quem foi o felizardo que a descobriu?
– Têm sido muitos, uns por ordem d’el-rei, outros por sua própria conta. A primeira missão deveu-se a Afonso de Albuquerque, em Dezembro do ano de mil quinhentos e onze, ainda no rescaldo da tomada de Malaca. António de Abreu foi por capitão-mor de três navios, levando como sota-capitães Simão Afonso Bisagudo e Francisco Serrão (que, juntamente com o primo Fernão de Magalhães, tomou parte comigo na conquista da cidade). Com eles ia Francisco Rodrigues que, apesar de moço, era já um grande debuxador de cartas de marear e padrões; levavam também alguns pilotos malaios ou jaus conhecedores daqueles mares, com a cópia de uma carta de marear, que Albuquerque tinha comprado a um piloto jau, com as derrotas para as ilhas das especiarias. Abreu regressou aqui no mês de Dezembro seguinte, depois de um ano de navegação, mas Francisco Serrão, que naufragou nas Molucas, andou por lá a explorar os mares a Sul.
– Foi então, depois dessa viagem, que Francisco Rodrigues debuxou as quatro cartas destes mares, cujas cópias me mostrais?
– Delas se serviu João Lopes Alvim, logo no ano seguinte, para ir às Molucas e, pelo caminho, colher informações das ilhas de Java a Timor, daí seguir para norte até Banda, tal como devem ter feito não só Diogo Pacheco, na sua segunda viagem, mas também Gomes Sequeira, que deu o seu nome a umas ilhas desconhecidas, muito além de Java. No entanto, Cristóvão de Mendonça foi quem passou mais tempo a cartear as costas da Ilha do Ouro, nas duas viagens que lá fez.
Cristóvão de Mendonça, o cunhado do duque de Bragança, no ano de vinte e um, fora enviado a esses mares por el-rei D. Manuel como capitão-mor de uma frota de quatro navios, de que eram capitães Pedro Eanes, o Francês, numa caravela, Francisco Polés num bergantim e Gonçalo Homem no seu parau76. No seu regimento levava duas missões secretas: tendo sabido que Fernão de Magalhães vinha de regresso a Espanha, el-rei ordenara-lhe que fosse às ilhas Molucas e de Banda para lhe afundar a frota, se ele se atrevesse a surgir em águas de domínio português, segundo o tratado de Tordesilhas que Carlos V não parecia disposto a cumprir em relação às Molucas. Ao mesmo tempo, el-rei recomendara-lhe muito que buscasse a Ilha do Ouro, porque tomara nota das informações de Pêro de Faria e queria certificar-se do seu descobrimento.
– Mendonça explorou-a?
– Mendonça partiu para Samatra e, no início de Janeiro, apanhou a monção, seguindo viagem para sudeste onde achou uma ilha, que julgou ser a do Ouro, mas à qual mais tarde chamou Ilha do Engano por ter feito outra descoberta maior.
– Era a Ilha do Ouro? – perguntara ansioso, porém, a entrada do secretário com o mouro Coja Ale impedira Faria de terminar a sua história, deixando-o roído de curiosidade.
Se o capitão o queria mandar à descoberta daquele mistério, não seria ele a contrariá-lo, muito pelo contrário, não descansaria enquanto não soubesse o que acontecera aos portugueses que não haviam tornado a Malaca, assim como àqueles cujos nomes se desconheciam. A monção forçá-lo-ia a invernar em Samatra, dando-lhe tempo de sobra para criar amizade com os da terra e fazer discretamente as suas inquirições.
Agora, à vista da ilha, recorda-se daquela prática e ri-se da sua própria pertinácia na esperança de, um dia, vir a fazer com os seus irmãos Álvaro e António essa mesma viagem à cobiçada ilha, para volverem a Malaca com os cofres cheios de ouro.
73 Mapas originais dos quais se tiravam cópias para os capitães e pilotos.
74 Terras do interior, muitas vezes identificadas com terra firme, o continente – parece ser a primeira referência portuguesa à Austrália.
75 Robert Marx, um caçador de tesouros, gastou vinte milhões de dólares na sua busca. O tesouro é disputado pela Malásia, Indonésia, Portugal e Estados Unidos. Entre muitas outras riquezas, crê-se que trazia duzentos cofres de pedras preciosas, diamantes pequenos com a dimensão de meia polegada e com o tamanho de um punho os maiores, estatuetas e objectos de ouro, de vários tipos.
76 Como uma fusta de dezoito a vinte bancos de remos, sem coberta; além dos remadores pode levar até cento e trinta homens de armas e duas bombardas.
II
Um leopardo não pode mudar as suas manchas
(malaio)
Carta do Rei dos Batas ao Capitão de Malaca Pêro de Faria:
Cobiçoso mais que todos os homens do serviço do Príncipe rico do grande Portugal teu senhor e meu, ao qual em ti varão de coluna de aço Pêro de Faria, novamente obedeço por verdadeira e santa amizade, para de hoje em diante me render por seu súbdito, com toda a limpeza e amor que um bom vassalo deve fazer, eu, Anggi Sri Timorraja, desejando agora de novo tua amizade, para cos fruitos desta minha terra enriquecer os teus súbditos, me ofereço por novo trato de ouro, pimenta, canfora, águila, e beijoim encher essa alfândega do teu Rei e meu, com tanto que na firmeza de tua verdade me mandes hum cartaz de tua letra para minhas lancharas e jurupangos navegarem seguros com todos os ventos. E te peço mais de nova amizade, que dos esquecidos de teus almazéns me socorras com pelouros e pólvora, de que ao presente me acho muito falto, para com a ajuda e favor deste primeiro çauguate77 de tua amizade, castigar os perjuros Achens, inimigos cruéis dessa tua antiga Malaca, com os quais te juro de em quanto viver nunca ter paz nem amizade, até não tomar vingança do sangue de três filhos meus que de contino ma pedem com as lágrimas derramadas pela nobre Mãe que os concebeu, e os criou a seus peitos, que este cruel tirano Achem me tem mortos nas povoações de Japura e Lingga, como mais particularmente em nome de minha pessoa to dirá Aquarem Dabolai irmão da triste Mãe destes filhos, que de mim te envio por nova amizade, para que, senhor, contigo trate o mais que lhe parecer serviço de Deus, e bem do teu povo.
(Peregrinação, capítulo XIII)
Fernão Mendes Pinto nunca vira, nem mesmo em terras da Índia, bichos voadores mais estranhos do que os de Samatra: bugios pretos de grandes olhos redondos, lagartos vermelhos, raposas com asas de morcego e tantos outros que lhe passavam a voar por cima da cabeça, sempre que saía do jurupango para desentorpecer as pernas em terra, durante a longa navegação pelo rio Guateamgim. Estarrece-o, apesar de se saber seguro na caravela, o tamanho dos lagartos que pejam o seu leito e margens, lançando-se com ferocidade sobre tudo o que se move, a que não escapam sequer as canoas dos pescadores.
– Se Deus me der vida e eu volver a Portugal, Coja Ale, é minha tenção escrever o que vi por estes lugares, mas juro-te que não ousarei contar as novidades desta terra, por medo do que de mim dirão os leitores, sobretudo aqueles que viram pouco do mundo, porque, como viram pouco, também costumam dar pouco crédito ao muito que outros viram e tachar-me-ão de mentiroso e fantasioso.
O mouro ri-se, fazendo um aceno de concordância. Tinham aportado, ao fim da manhã, à pequena povoação de Batu Rendang, a um quarto de légua da cidade de Panaju, onde o rei dos Batas reunia o seu exército para marchar sobre Achem. Da coberta do barco, Fernão observa o trabalho dos camponeses com os búfalos nos campos de arroz do gracioso kampong, de casas de madeira, ornadas com relevos de serpentes, lagartos ou cabeças de monstros com olhos esbugalhados, pintadas de cores vivas e assentes em altos pilares de madeira para impedir a água do rio de as inundar na subida da maré. Os telhados, cobertos de palma e caniço, são o elemento mais estranho, com uma inclinação côncava ao meio, em forma de sela de cavalo, com cada extremidade a terminar numa ponta muito alta e aguçada, como os cornos dos búfalos.