No centro da aldeia há uma grande casa quadrada, de bambu, que Coja Ale diz chamar-se balei, onde o chefe recebe os estrangeiros que o visitam e os moradores se reúnem para fazerem os seus negócios e festividades.
Fernão espera pela resposta de Timorraja ao mensageiro que ele lhe enviou a anunciar a sua vinda, com um presente e uma carta do capitão de Malaca. Assusta-o um pouco a audiência com o rei, pois terá de dissimular bem as suas respostas para não trair as intenções de Pêro de Faria, muito mais interessado em estabelecer tratos de mercadorias com ele do que propriamente ajudá-lo na sua guerra contra o rei dos Achens, com quem também deseja fazer acordos de paz e mercancia, para que deixe de atacar Malaca ou os navios portugueses.
Fernão tem Pêro de Faria em grande estima e sente-se afortunado por estar ao seu serviço, sob a sua protecção. Sendo um dos mais antigos oficiais das campanhas da Índia, com a vantagem de ser casado com uma mulher da terra, o capitão de Malaca conhecia como ninguém todos os meandros da administração dos lugares e fortalezas, onde servira ou tinha amigos, o que lhe dava acesso à documentação secreta destinada ao rei de Portugal, permitindo-lhe obter informações sobre tudo o que se passava naquelas partes, em particular sobre os negócios e viagens que lhe garantissem o aumento da sua fortuna. Empenhara-se pessoalmente em o preparar para a embaixada, fornecendo-lhe documentos, cartas e mapas com descrições das ilhas e dos costumes das suas gentes, rogando-lhe que os estudasse muito bem, para não cometer erros nem descortesias que os ofendessem e provocassem conflitos.
Fernão obedecera de boamente, por ser tarefa muito a seu gosto conhecer novidades e estudara com toda a atenção nas cartas de marear as derrotas para Samatra, vendo como esta ilha se avantajava em tamanho e riqueza a todas as outras que enxameavam aqueles mares. Era nomeada pelos antigos como Aurea Chersoneso e pelos seus naturais Suvarnabhûmi, a Terra do Ouro.
Lera a descrição da ilha, dos seus dezanove reinos mais onze senhorios de gentios e mouros, que frequentemente se guerreavam, memorizara as mercadorias em que se poderia conseguir maior ganho – ouro, benjoim, pimenta e cânfora. Este bom conhecimento de Samatra devia-se, em parte, aos sultões de Pacem e Pedir que se haviam homiziado em Malaca, depois de o rei de Achem os ter derrotado na guerra e se ter apropriado dos seus reinos, no ano de vinte e quatro, punindo-os pelas suas relações de amizade com os portugueses cristãos.
De entre os muitos papéis que Fernão consultara, tombara-lhe sob os olhos uma folha com um texto copiado do livro de viagens de Marco Polo, com a descrição do reino dos Batas, denominado Dragoyam78. O viajante de Veneza retratava esse povo como uma gente idólatra, tão bestial e selvagem que comia carne humana, incluindo a dos parentes enfermos aos quais se apressavam a dar a morte. Se os curandeiros, feiticeiros ou encantadores, depois de consultarem os seus diabos, afirmassem que o doente já não tinha salvação, toda a parentela se reunia e mandava chamar um homem que tinha por mester matar os enfermos com muita delicadeza, tapando-lhes a boca até perderem o bafo. Então, como açougueiros, talhavam o corpo do morto em pedaços, que assavam temperados de sal e coziam com a mioleira e outras miudezas, empanturrando-se com as suas carnes, roendo os ossos e chupando os tutanos, sem deixar migalha.
Dizem que, se as carnes apodrecessem e se tornassem em bichos, eles morreriam depois de fome, e a alma daquele finado padeceria por isso mui grandes penas, justificava Marco Polo, porém fora a frase final que mais atemorizara Fernão: E quando os homens daquela região prendem algum homem de outras partes estranhas, se não pode resgatar-se com dinheiro, matam-no e comem-no.
Com a sua desventurada sorte, Fernão teme vir a acabar num caldeiro de cozedura dos gentios ou do próprio rei. Para se desassombrar dos terrores, pergunta a Coja Ale se tais festins de carne humana ainda têm lugar em Samatra.
– Apenas o fazem os batas, que são gentios – responde o mouro muito ufano. – Em Achem e nos reinos seus aliados, deixaram de o fazer quando se converteram ao Islão e começaram a seguir os ensinamentos de Muhammad, o profeta de Deus. Assim o deveria fazer Timorraja, aceitando a conversão que lhe oferece o el-rei de Achem, em vez de lhe fazer guerra. Os batas não só comem os parentes, quando estes estão velhos e não servem para trabalhar, como comem vivos os cativos na guerra e os condenados na justiça por crimes de adultério, espionação ou traição. O coração, o nariz, as orelhas, as palmas das mãos e as solas dos pés são reservados a el-rei, por serem as melhores partes para fortalecimento do tondi, o espírito vivo que habita no corpo de cada homem. Com o sangue que recolhem do supliciado fazem um arroz.
Fernão deixa de o ouvir, mareado de morte com o funesto relato, feito na boa língua portuguesa, que o mouro domina à maravilha. Embora ache que Coja Ale zomba dele, exagerando a ferocidade dos batas, por se aperceber dos seus medos, a sua fala em vez de o sossegar aumenta-lhe os receios. Agasta-o também a presunção do mouro em alardear a crença de Mafamede na presença de um cristão, contudo nada diz, para evitar atritos, visto precisar dele e do seu conhecimento de Samatra para poder regressar a Malaca com a missão cumprida.
Sons de festa anunciam a chegada do Xabandar, o oficial que tem a seu cargo a preparação da armada. Vem com um animado cortejo de cinco lancharas, os seus navios de guerra de remo e vela, muito velozes, e doze balões, umas canoas semelhantes às almadias dos mouros, mas mais largas. Com grande estrondo de atabaques, sinos e cantoria das chusmas, escoltam o jurupango, num curta viagem, até ao cais principal de Panaju.
O movimento do porto em nada se parece com o de Batu Rendang e Fernão cola-se à amurada para ver o espectáculo da armada dos navios de guerra dos batas, surta diante da cidade e em grande azáfama, com o constante vaivém de batéis cheios de soldados e marinheiros vindos de muitas partes do reino, que desembarcam para se juntarem ao exército do rei. A pequena frota do Xabandar passa por entre eles e vai surgir num cais reservado a el-rei e aos seus dignitários.
A praia fervilha de agitação e ruído, com a multidão de soldados, gentes de desvairadas raças, tanto estrangeiros como naturais da ilha, com trajos e armas muito distintas, desde os mosquetes, em menor quantidade, aos arcos e flechas, azagaias, lanças de pontas de ferro e, à cinta, em vez dos cris, pendem as jonos, as ameaçadoras espadas dos batas. A maré humana abre caminho, forçada pela guarda do Xabandar, e o língua malaio convida o embaixador a segui-los até ao local onde o Bendara, figura principal do reino, o espera com muita gente nobre para o conduzir à presença d’el-rei.
A comitiva pretende ser de muita pompa, mas, apesar da matinada de atabaques e sinos, tem pouco brilho, por todos virem mal trajados e sem jóias, quase não se distinguindo da gente comum, que acode às ruas para os ver passar. Fernão espanta-se da pobreza do vestir, da sua rudeza, em verdade mais próprias de gente sem polícia, do que de prósperos mercadores da fabulosa terra do ouro, como ele e Pêro de Faria haviam imaginado pelo muito que lha gabavam Coja Ale e outros mouros da alfândega de Malaca.
O cortejo cruza os bairros dos mercadores estrangeiros, separados segundo as nações a que pertencem, de ruas ladeadas por casas de madeira com um gudão ou armazém por baixo, muitas lojas de prestamistas e usurários para as trocas de dinheiro, de mercadores turcos, guzarates, de Calecut, Ceilão, Sião, Bengala e outros lugares que vendem panos de algodão, sedas, porcelanas, drogas, especiarias e pedras preciosas, enchendo Fernão de esperanças em bons negócios. Atraídos pelo som da fanfarra, os lojistas e demais moradores, assomam às portas e varandas a ver passar a embaixada.