São quase só mulheres, crianças e velhos, o que Fernão não estranha depois de ver a multidão de homens do exército d’el-rei que esperam para marchar contra os achens; é um povo gracioso, mais pequeno do que o malaio, de pele mais clara e corpos bem feitos. As mulheres que o miram sem rebuço usam, como os homens, panos enrolados à volta da cintura que lhes chegam aos joelhos ou aos tornozelos, um guarda-peito ou um lenço bordado com contas coloridas a cobrir-lhes os seios e um ombro. Trazem metidas nos lóbulos das orelhas grande soma de pesadas argolas que lhas fazem muito compridas, assim como vários aros grossos à roda do pescoço, manilhas nos braços, de ouro ou de metal, e ainda pregos de cabelo em forma de dragões e pássaros.
Todos têm a cabeça assaz estreita e bicuda com os narizes chatos, por ser costume, à nascença, as mães apertarem as cabeças dos filhos e espalmarem-lhes as ventas, a fim de os fazerem mais belos. Quando sorriem, não é coisa bonita de se ver, porque os dentes, pretos do bétele que mascam sem cessar e limados em pontas agudas, lhes transformam o sorriso no esgar ameaçador de um tigre e Fernão sente a pele arrepiada, crendo ver em cada um deles um comedor de carne humana, com ganas de lhe conhecer o sabor.
Passam pela Grande Mesquita diante da praça principal, onde se situam as casas do tribunal e das audiências aos enviados estrangeiros, porém o Xabandar não pára aí, seguindo para o recinto fechado das casas reais. Por entre as árvores, Fernão vê um belo edifício que lhe dizem ser o Sida-Sida, que alberga a guarda real de eunucos e, por fim, o cortejo chega às portas do paço de Timorraja.
Uma mulher velha e alguns fidalgos de melhor presença, com amáveis palavras de boas-vindas, que dão algum descanso aos seus medos e desconfianças, conduzem-no através de dois pátios e várias salas até à câmara d’el-rei. Fernão faz-lhe as cortesias que estudou, pondo por três vezes o joelho em terra, com muito acatamento, erguendo-se e avançando três passos de cada vez, até chegar à distância prescrita para lhe entregar a carta e o presente.
– Que vens fazer aqui, em tempo de guerra? – pergunta, sem querer ouvir ler a carta, vendo com muita satisfação os ricos panos da Índia que lhe manda Pêro de Faria, à custa da Fazenda da Coroa. – Depois do socorro em armas e munições que o capitão de Malaca me mandou por meu cunhado, mais do que eu lhe pedi, não me tomes por ingrato por te dizer que esperava que ele me enviasse também uma hoste de portugueses artilheiros e arcabuzeiros, em cuja arte sois os melhores do mundo.
Para dispor bem o rei à desejada aliança e futuros tratos, o capitão enviara-lhe, além dos pelouros e pólvora mencionados na carta, cem panelas de pólvora, rocas e bombas de fogo79, que haviam conseguido o efeito pretendido.
– Venho para servir Vossa Alteza nesta sua jornada – responde Fernão, conforme lhe fora ordenado, embora sentindo algum remorso pela mentira. – Mas, para isso, preciso de ver com os meus próprios olhos as fortificações da cidade de Achem e quantas braças de fundo tem o rio, para saber se nele podem entrar as nossas naus mais grossas e os galeões, porque o capitão de Malaca determinou que, mal tome posse da capitania e lhe chegue a armada da Índia, virá ajudar Vossa Alteza e entregar Achem nas vossas mãos.
A resposta não é certamente do agrado de Timorraja que, todavia, disfarça bem a contrariedade, quando fala.
– Jurei tomar vingança dos achens pela morte dos meus três filhos e reconquistar as terras que me roubaram. Não terei paz enquanto o não fizer e amanhã mesmo marcharei contra os meus inimigos, por isso não posso esperar pelos reforços de Malaca. Agradará decerto ao teu capitão e a todos os cristãos portugueses saber que me recusei a trocar a lei dos meus antepassados pela dos muçulmanos, como quer o vosso inimigo Alauddin Mughāyah Shāh, que acaba de usurpar o trono Aceh ao seu irmão mais velho.
Faz uma pausa, olhando para Fernão que o ouve com grande acatamento, consciente do silêncio respeitoso da corte que, tal como o povo, parece amar de verdade o seu soberano.
– Alauddin buscou fazer aliança comigo, oferecendo-me a sua irmã em casamento, exigindo em troca que eu me convertesse à Lei de Mafamede e repudiasse a minha esposa, mãe de meus filhos. Perante a minha recusa, fez-me crua guerra, mas foi vencido e forçado a pedir pazes, seladas com a promessa de casar o meu filho mais velho com a princesa sua irmã. Mandei retirar o exército e voltei para casa, a fim de preparar o casamento.
Cala-se de novo, como se lhe custasse a falar ou quisesse impedir que as lágrimas que Fernão lhe vê nos olhos corressem pelo rosto, tão abundantes como as de muitos dos seus cortesãos, de mistura com suspiros e soluços que não logram abafar.
– Contudo, o traidor achem que recebeu dos turcos ajuda em homens, mosquetes e artilharia, incitado por um seu caciz mouro, rompeu a paz sem dar aviso, fazendo uma razia nas minhas terras, que achou desprotegidas e tomou sem trabalho, matando setecentos ourobalões80 e os meus três filhos, que haviam crido na sua palavra de paz. Então, jurei ao deus da justiça não comer fruta, nem sal, nem cousa que me faça sabor na boca até vingar a sua morte.
Termina com a voz embargada pelo choro, a que se junta o pranto da assistência, tão alto e tão sentido, que Fernão se comove e também não consegue suster as lágrimas face à dor do rei dos Batas e do seu povo, acirrado pelo remorso das falsas promessas que lhes fez. Timorraja, vendo chorar o embaixador estrangeiro, ergue-se do bailéu onde estava sentado para se prostrar diante de um nicho com um pagode enfeitado com muitas flores e ervas de cheio a arder. Em voz alta tece-lhe louvores pela amizade do poderoso senhor de Malaca, inimigo de Aceh, a cuja litania a assistência dá o responso num coro de vozes estranguladas pela comoção. Prostrado como os demais em adoração, Fernão roga a Jesus Cristo perdão pela sua falsidade, justificando-se com Timorraja ser um rei idólatra e quiçá comedor de carne humana.
El-rei ergue-se, imitado por toda a assistência, e chamando Fernão para o seu lado, dirige-se em procissão para o pátio principal do seus paços, onde o esperam todos os comandantes do seu exército para assistirem ao sacrifício de um búfalo de uma brancura imaculada. Junto do animal, no centro do pátio, o sacerdote tem o rosto coberto por uma máscara de madeira, os braços e pernas tatuadas com cabeças de pássaros e de outros animais, pintados de cores vivas.
O búfalo é degolado com um cris de ouro, o sangue aparado numa vasilha preciosa, de seguida esventrado e o sacerdote lê no aspecto e movimento das suas entranhas o resultado da guerra.
– Se o resultado for diferente do que ele previu – esclarece o língua, em voz baixa, por trás de Fernão – o guru será morto por ser mau adivinho.
77 Saguate – presente.
78 O Livro de Marco Polo, livro terceiro, capítulo XVII. Fac-símile da obra impressa por Valentim Fernandes, em Lisboa, 1502.
79 Roca era um canhão que lançava pedras e bombas de fogo seriam talvez projécteis que usavam nafta.
80 Chefes militares, senhores da guerra ou chefes territoriais.
III
Onde há açúcar, há formigas
(malaio)
[Em 1528], a outra nau da companhia esgarrou pelo mar do Cabo da Boa Esperança pera a banda do Sul, não sabendo por onde ia, e foi tomar nas costas da ilha de Çamatra, onde foi ter na Ilha do Ouro, que a areia da praia, grossa e miúda, era tudo ouro; a terra mui viçosa, e grandes arvoredos e ribeiras de boas águas, e muitas frutas das árvores, mui gostosas; a gente nua e bestial, que se cobria com panos feitos das folhas d’ervas, e não tolhia nada do que lhe tomavam. Carregaram quanto ouro quiseram e se partiram navegando sem saber pera onde mais lhe serviria o vento, com que foram ter na costa da Çamatra, já mui desbaratados, com a mais da gente morta e doente, e fazendo tanta água que se ia ao fundo; e correram pera terra pera varar, e antes de chegar a ela deram em uma restinga em que se perdeu a nau; e os que puderam trabalhar concertaram o batel, em que se foram a terra com muito ouro que cada um meteu, e na terra foram mortos per barcos de pescadores que os toparam e levaram o ouro. Isto se soube em Malaca por mercadores de Çamatra que lá iam tratar, que por toda a terra se falava deste batel que acharam pescadores carregado d’ouro, e que os homens falavam como bombardeiros, de que trouxeram um a elRei de uma terra, que o mandou espetar em um pau porque lhe disse que não sabia tornar à ilha. Onde assim acharam aquela Ilha do Ouro, pela qual informação se soube que esta nau fora da companhia do Brigas.