Lendas da Índia, de Gaspar Correia
Fernão ainda não se acostumou às espantosas trovoadas de Samatra, cujo ribombar faz estremecer a terra como a explosão de um barril de pólvora, enquanto todo o céu se incendeia com raios em forma de forquilha que coriscam em todas as direcções. No entanto, a gente da ilha parece nem dar por elas.
El-rei partira para a guerra, há cerca de um mês, com o seu poderoso exército, deixando o reino quase despovoado de homens e com pouca guarda de gente armada, situação privilegiada para quem quer espiar o reino ou fazer devassas e perguntas sem correr o risco de ser preso. Fernão não o seguira, com o pretexto de lhe ser forçoso ir só com um guia e um língua, para não levantar suspeitas, observar as fortificações e a fundura do rio do Achem, a fim de preparar a vinda da armada de Malaca.
Alcançara o principal propósito que ali o trouxera, ao conseguir de Timorraja grandes benefícios e isenções de tributos para uma boa veniaga à fazenda de Pêro de Faria, que Coja Ale começara logo a vender com muito lucro. Na ausência do rajá, Fernão ficara livre para se dedicar à busca de indícios e informações sobre o achamento da Ilha do Ouro, não só no reino dos Batas por meio dos mercadores da cidade de Panaju, mas também de outras partes de Samatra nunca antes visitadas dos portugueses.
Tratara, em primeiro lugar, de registar os rios, portos e angras que ia descobrindo, tanto do lado do mar mediterrâneo, como da parte do oceano, anotando cuidadosamente os nomes, a altura em graus ou medindo os fundos, conforme ao regimento que lhe dera Pêro de Faria. Colhera preciosas informações sobre a comutação de produtos e tratos daquelas gentes que ainda não tinham tido comércio com os portugueses e sobre a pescaria do aljôfar nas pequenas ilhas da costa ocidental, entre Pulo Tiquòs e Pulo Quenim, que os batas levavam a Pacem e Pedir, para serem resgatadas pelos turcos do estreito de Meca, a troco das mercadorias que traziam do Cairo e dos portos da Arábia.
Descobrira outras coisas de maior espanto, como o surgidouro da baía de Pulo Botum, onde viera ter a nau Biscainha, da frota de Fernão de Magalhães, que se veio a perder no boqueirão de Sunda, quando procurava atravessar para a ilha da Java. Achara também a baía onde naufragara o capitão Rosado, natural de Vila do Conde, que viera de Dieppe para a Índia com uma frota de corsários franceses. Das três naus, só a de Rosado conseguira chegar a Samatra, graças à sua experiência de piloto e talvez à posse de alguma carta de marear portuguesa, porém naufragara nos recifes e os sobreviventes haviam sido massacrados pelos pescadores de pérolas. Timorraja levara para Achem, na sua artilharia, dois camelos e uma meia espera81 de bronze recolhidos nos destroços dessa nau.
Fernão atara mais um fio de memória, ao descobrir o destino de outra nau desta frota, comandada pelo capitão e piloto português Estêvão Dias Brigas, cuja história ouvira contar na sua viagem para Diu e cuja viúva, a famosa Marquesa, chegara a conhecer, no fim do cerco da fortaleza. O capitão Brigas e os seus quarenta e oito corsários franceses tinham apanhado um tempo esgarrão que os forçara a arribar a Diu onde, para salvarem as vidas, se fizeram muçulmanos e serviram como bombardeiros no exército do sultão Carcandacão de Cambaia. No ano de trinta e três, Bahadur, o novo sultão do Guzerate, empregara os elches82 e a sua artilharia na guerra com o rei dos Mogores, em que todos morreram, incluindo o marido da Marquesa. O mundo até parecia pequeno, naqueles mares!
Registara também com grande minudência as diferentes nações de gentes que habitavam ao longo daquele oceano e dos rios Siak, Kampar e Indragiri por onde ia ter a Malaca o ouro de Menancabo ou Minangkabau. Segundo lhe disseram os naturais, a rainha Sabá mantivera no reino de Kampar uma casa de contrato com o feitor Nausem, para os tratos do ouro.
Por outro lado, prosseguia com a sua inquirição e punha por escrito toda a informação obtida sobre a Ilha do Ouro, que o capitão de Malaca muito encomendara e ele nunca descurara de saber, sempre que a sua espionação o levava a novos lugares. Pulo Mas jaz ao mar deste rio de Calandor em cinco graus da parte do Sul, cercada de muitos baixos, e de grandes correntes, que pode distar desta ponta da ilha Samatra, até cento e sessenta léguas pouco mais ou menos, fora o que todos lhe disseram de início.
Aproveitara bem o tempo e, com a prata que Pêro de Faria lhe dera para os gastos da embaixada, pudera comprar com presentes as boas graças de um ancião bata, chefe de uma família influente de Barus, a terra onde Diogo Pacheco aportara nas duas viagens que fizera em busca da ilha. O velho Salwi fora chamado por Timorraja para, durante o tempo de guerra, se ocupar dos mercadores estrangeiros que tinham tratos na cidade e, tendo conhecido Fernão na embaixada à corte, convidara-o muitas vezes para sua casa, onde fora recebido por toda a família com grande hospitalidade. Salwi e o seu filho Amri lembravam-se bem da chegada da nau do português a Barus, tanto no ano de dezanove como no de vinte. Com um bom língua malaio que o capitão lhe dera em Malaca, Fernão pudera interrogá-los e acrescentar mais pormenores à história que conhecia.
Fora em mil quinhentos e dezanove que o governador Diogo Lopes de Sequeira enviara o cavaleiro Diogo Pacheco, um marinheiro experimentado e valente guerreiro, com a sua nau e um bergantim comandado por Francisco de Sequeira, a descobrir toda a costa da ilha de Samatra, cuja parte sul nunca fora navegada, porque os naturais diziam que quem lá ia morria. Desconfiava-se que levava um regimento secreto, com ordens expressas d’el-rei D. Manuel, mas ninguém, nem mesmo Pêro de Faria, o soubera ao certo.
A primeira parte da viagem, em que contornaram a ponta ocidental da ilha, decorrera sem sobressaltos, porém, ao virarem a sul, cerca de vinte léguas depois do reino de Achem, foram colhidos por uma forte tempestade e o bergantim desaparecera. A nau de Pacheco continuara para sul e fora arribar ao porto de Barus.
– Nunca tínhamos visto um navio daquele tamanho e forma, com uma gente branca tão estranha como os seus trajos – evocou Salwi, a rir, mostrando os dentes limados, com incrustações de ouro –, por isso causou tão grande espanto e medo.
O filho juntou o riso ao do pai:
– E lembras-te de como as tripulações de três barcos achens que estavam surtos no porto, fugiram para terra ao reconhecerem a bandeira dos seus inimigos portugueses?
– O governador, que era o meu pai, quando viu os sinais de paz que faziam do navio, mandou-lhe num batel um saguate de refresco com dois oficiais para saber quem eram e o que queriam.
Diogo Pacheco retribuíra os presentes e apresentara-se como um capitão d’el-rei de Portugal, enviado pelo governador da Índia a rodear a ilha de Samatra para notificar os seus principais portos de que os portugueses haviam conquistado Malaca, mas queriam ter paz e tratos de mercadorias com os seus reinos e que os seus barcos lá podiam ir em segurança, se recebessem bem os mercadores portugueses nas suas terras. Oferecera-lhes ajuda de homens e armas contra os seus inimigos e dera salvo-conduto aos navios dos achens por se acharem no porto de Barus.