– Recebemo-lo muito bem – prosseguiu Salwi –, durante o tempo que ali passou a tomar água, madeira e provisões para a viagem, trocando as suas mercadorias pelos nossos produtos. Fez amizade com o meu pai, que o alojou na nossa casa. Nas muitas práticas que teve connosco e com os mercadores da terra, pouco quis saber sobre o reino de Barus, dos Batas ou do resto de Samatra, por isso soubemos que era Pulo Mas, a Ilha do Ouro, que ele verdadeiramente buscava.
Fernão suspendera a respiração, ao ouvi-lo falar do assunto que ali o trouxera, porém procurou não mostrar demasiado interesse para não espantar a lebre.
– O meu parente ia em busca da Ilha do Ouro? – perguntara, simulando espanto.
Fizera-se passar por um sobrinho de Diogo Pacheco, desejoso de conhecer o que sucedera ao seu tio, para ser mais bem aceite pelos batas, que acreditavam que as almas ou espíritos dos mortos continuavam a viver entre eles, a protegê-los ou a infernizar-lhes a vida. Para desempenhar bem o seu papel e conquistar a confiança dos gentios, mostrara muito interesse em conhecer a aventura completa do descobridor, a começar pela primeira viagem (que em Malaca se soubera com todos os pormenores da própria boca de Pacheco), a fim de poder fazer as perguntas sobre a segunda, a que deveras lhe interessava. Acrescentara, com uma risada:
– Essa ilha não é um embuste, uma fanfarronice dos homens do mar?
Amri adiantara-se ao pai e esclarecera extasiado:
– Não, não é uma fantasia, Pulo Mas é bem real! Fica a mais de duzentas léguas a sudeste de Barus. A meio desta derrota começa uma corda de baixios, restingas e recifes de muito perigo, o caminho para a ilha é pelos canais que há entre eles, os quais são muito estreitos e, por serem de areia, mudam a cada ano com a revolução que lá fazem as águas no Inverno83.
– É um ilha grandíssima, de serras e palmares – prosseguira o pai. – A sua gente é muito diferente da nossa, preta e de cabelos crespos. Dão muito ouro em troca de panos da Índia azuis e vermelhos, mas ninguém sabe como vivem, porque eles fazem o resgate à beira da praia e não consentem que se veja onde moram.
– Vai de cá muita gente a essa ilha? – perguntara, procurando manter a voz firme e serena, apesar do coração lhe querer saltar do peito.
– Não – respondera o pai. – São raros os mercadores que lá vão, por ser uma viagem muito longa, difícil e a boa monção não durar senão três meses, além de só se poder navegar em embarcações pequenas, por causa dos baixios e restingas, onde muitos naufragaram e perderam a vida. Em vinte velas que lá vão, tornam cinco, por isso quem lá foi e regressou, já lá não vai de novo. Deste modo, poucos conhecem a sua derrota. Feita a aguada, o teu parente despediu-se d’el-rei e de nós e prosseguiu viagem. Julgámos que não o volveríamos a ver, porém ele surgiu em Barus no ano seguinte, embora não lograsse desembarcar.
O resto da viagem era bem conhecida. Pacheco contornara a ilha, que fizera cartear com muito pormenor, cruzando o canal de Polimbam, entre Samatra e Java, para a costa do norte que percorreu, indo ter a Malaca com a sua carga e as boas novas. Soube então que o bergantim de Francisco de Sequeira naufragara nas costas do reino de Daya, com a morte de toda a gente, menos de um escravo canarim, que fora por terra até Pacem, onde desde mil quinhentos e quinze havia uma igreja e uma feitoria permanente de portugueses, para lhes dar conta do desastre.
Quanto à segunda viagem de Diogo Pacheco, Fernão preferira deixar para outra ocasião, a fim de não se mostrar demasiado ansioso, embora ardesse de curiosidade quando Salwi deixara escapar a menção aos mistérios que rodearam a nova passagem por Barus e os sucessos que, segundo ele, só os mortos poderiam contar.
Que quereria ele dizer com esses mistérios? Fernão aliciara o língua para que procurasse saber, entre a gente mais velha dos parentes ou dos criados de Salwi, se mais alguém conhecia aqueles sucessos que, pela sua novidade e estranheza, decerto fariam parte das histórias da família e seriam contadas nas reuniões e festas do clã. O homem fora diligente e topara com um verdadeiro milagre: a ama de Amri, viúva de um bata que fora com Diogo Pacheco na sua segunda viagem. A mulher tinha fama de feiticeira e, em troca de uma peça de pano de Cambaia, dispusera-se a falar com o morto, para saber o que na verdade se passara.
Fernão estava disposto a seguir todas as pistas e a ouvir todos os que conhecessem aquela história, mesmo o relato de um morto, a fim de saber mais do que aquilo que Pêro de Faria lhe contara – quase nada:
No regresso a Malaca, enquanto esperava pela monção para empreender nova viagem à Ilha do Ouro, Diogo Pacheco participara com os seus irmãos na grande batalha e tomada da fortaleza de Pago, construída e defendida por dois mil soldados do rei expulso, Muhammad, que se refugiara em Bintão e continuava a fazer guerra aos portugueses, a fim de recuperar a sua cidade e o reino.
Voltara a Samatra, no ano seguinte, com um jurupango, para navegar em águas menos profundas, e outro bergantim. À sua chegada a Barus, a fim de renovarem os tratados de amizade com o rei e aguardarem pelo início da monção de sudeste, uma armada de cinco navios guzerates, que estava surta no porto, em vez de fugir como os achens do ano anterior, fiada na diferença de número, acometera as embarcações portuguesas. O jurupango e o bergantim conseguiram fugir das bombardas inimigas, porém um temporal colhera-os de seguida e arrastara-os para muito longe em louca correria sobre as águas, para não mais serem vistos.
– Pode dizer-se que Diogo Pacheco foi o primeiro português a morrer neste descobrimento da Ilha do Ouro, pelo menos que se saiba. – E acrescentara, rindo-se: – Não quero que te aconteça o mesmo! Colhe todas informações e notícias que puderes, contudo sê discreto no modo como o fizeres, para que não te conheçam por espia e te matem, pois nem o cargo de embaixador os deterá.
Era um conselho sábio e ele faria bem em segui-lo, contudo a sua curiosidade intrometida sobrepunha-se muitas vezes à prudência avisada.
81 Camelo é um canhão curto e grosso que dispara balas de pedra de oito a quinze quilogramas. Meia espera é um canhão com cerca de dois metros de comprimento que dispara balas de ferro de cerca de três quilogramas de peso.
82 Os elches (do árabe elj) eram os cristãos que renegavam a sua fé e se convertiam ao islamismo.
83 Esta descrição da Ilha do Ouro, registada pelos cronistas portugueses, antes de 1520, coincide perfeitamente com a costa de Kimberley, no noroeste da Austrália e só o poderiam saber se lá tivessem ido. Timor fora visitado e registado em 1512-14. É impossível que os portugueses não conhecessem também as costas norte e noroeste da Austrália, a partir dessa data, tendo já explorado as ilhas de Banda e Molucas.
IV
Uma jornada de mil milhas começa com um único passo
(malaio)
Mito da criação do mundo em Samatra
No início só havia Debati Hasi Asi, Deus Supremo que criou o Céu com um imenso Mar por baixo; a Terra e os homens ainda não tinham sido criados. No Céu, dividido em sete níveis, viviam os deuses e o Mar era a morada de Naga Padoha, o poderoso dragão dos Infernos. Foi o deus Mula Djadi Na Bolon (O Começo do Devir) que criou tudo o que existe, com a ajuda de duas andorinhas mensageiras. Mula Djadi tinha três filhos – Batara Guru, Mangalabulan e Soripada, nascidos dos ovos de uma galinha que ele fecundou –, aos quais deu por esposas as suas três filhas. Os três casais divinos foram os pais da humanidade.
Foi Boru Deak Parudjar, a filha de Batara Guru, que criou Samatra. Para fugir ao futuro marido, o horrendo lagarto filho de Mangalabulan, ela desceu por um fio dos Céus e refugiou-se no Mundo do Meio, que não passava de um deserto de água, onde ficou a viver. Mula Djadi compadeceu-se da infelicidade da neta e enviou-lhe uma das suas aves mensageiras com um punhado de terra para ela viver.
A Deusa estendeu a terra sobre o mar como uma manta larga e comprida. Naga Padoha, o dragão dos Infernos que vivia na água, quando sentiu o peso da terra sobre a cabeça, rugiu de fúria e tentou sacudi-la, rodando e retorcendo o corpo. A terra encharcada e amolecida pela água quase foi destruída. Auxiliada por Mula Djadi, Parudjar logrou vencer o dragão, prendendo-o a um bloco de ferro; sempre que Naga Padoha agita as correntes, causa um tremor de terra no mundo.