O filho de Mangalabulan tomou uma forma mais bela e Parudjar desposou-o. Desta união nasceu um casal de gémeos que ficaram na Terra e se uniram para criar a humanidade. É deles que descendem os batas.
Fernão e o língua seguem o rapazola que os leva ao pequeno pagode onde os espera a feiticeira bata, para invocar a alma do marido e fazer-lhe perguntas. O português sente um arrepio de medo, por tal coisa lhe parecer obra do demónio, pecaminosas superstições em que são useiros e vezeiros os gentios destas terras do Oriente, capazes de lhe porem em perigo a cristianíssima alma. Vai ter dificuldade em justificar a Pêro de Faria os custos que desembolsara para tão diabólica cerimónia, no entanto, apesar destes perigos, não conseguira resistir à curiosidade de saber o mistério que a mulher guardara consigo durante tantos anos.
Ela contara ao língua que, ao verem os navios de Diogo Pacheco com as bandeiras portuguesas a acercarem-se do porto, os mouros das naus de Cambaia avisaram o governador contra aqueles cristãos, que não queriam mercadejar pacificamente, mas tão-só apoderar-se do reino, como haviam feito a Malaca e outras terras, com terríveis massacres dos seus povos. Convencido e temeroso, o governador mandara sair as embarcações de guerra com os seus guerreiros, mas o marido dela, que se fizera amigo de Pacheco na visita anterior, metera-se numa almadia para ir ao bergantim preveni-lo do perigo e, com medo de ser morto pela sua gente, embarcara com ele.
O bata fora um dos sobreviventes que regressara a casa e Fernão ansiava saber se ele teria contado à mulher a mesma história dos jaus de Malaca: a tempestade levara-os para bem longe de Barus, ao longo da corda de ilhas para lá de Java e Timor, até uma grande ilha desconhecida, montanhosa e verdejante, que parecia corresponder à descrição que dela haviam feito os batas que lá tinham ido.
Diogo Pacheco passara com outros portugueses da tripulação para o jurupango, que era de menor calado e casco mais raso, a fim de a explorar, porém o vento mudara bruscamente, o mar embravecera, atirando com o barco contra os rochedos, ao mesmo tempo que uma multidão de gente negra de cabelos crespos, armada de arcos, clavas e paus tostados, acudia à praia, lançando setas contra a embarcação encalhada. O bergantim não lhes pudera valer, porque os ventos arrastaram-no para o largo onde decerto se perdera.
Na ilha, durante o ataque dos negros, alguns matalotes e gente da chusma conseguiram fugir num batel e rumaram para as ilhas de Banda, onde foram recolhidos por um navio português e levados a Malaca. Por eles se soube da perdição de Diogo Pacheco que foi registada nos relatórios oficiais.
Ter-se-ia passado assim aquele descobrimento, que parecia amaldiçoado, condenando à perdição os que ousavam tocar as suas praias? Ou o dito relato encobriria algum crime de traição dos jaus e malaios, como tantos outros que enchiam vários livros de registos da fortaleza? Não será decerto por meio daquele diabólico ritual que o irá descobrir, mas não tardará a confirmá-lo, porque o guia pára diante de uma graciosa cabana de madeira, a cuja porta assoma uma anciã de rosto enrugado, pequena e frágil, a recebê-los.
Fernão entra para o único aposento térreo, sombrio, apenas iluminado pela luz exterior coada através das junções da madeira, com máscaras de animais nas paredes e um totem com figuras humanas a um canto. No lado oposto, sentam-se dois músicos, um com o surdam ou flauta de bambu, e o outro com um gamelan, o conjunto de instrumentos – marimbas, ferros, címbalos, gongos e tambores – muito comum naqueles reinos. Porém, o que mais desperta a sua atenção é um boneco de madeira, de tamanho natural, de pé sobre um pedestal.
– É Si Gale Gale – diz-lhe o língua em resposta ao seu olhar perplexo –, um títere que vai encarnar o begu ou alma da morte do marido, que foi libertada quando ele morreu e o seu tendi ou alma da vida desapareceu. Ele traz as roupas do morto, para que a sua begu entre nele sem medo. Foi por esta razão que surgiu, não se sabe quando, o primeiro destes títeres, em Palau Samosir, onde vivia um casal que se amava muito, mas não tinha filhos. O homem morreu de repente e a esposa sentiu-se tão só que esculpiu um bonifrate de madeira com a figura e o rosto do marido, para lhe fazer companhia. Sempre que a solidão a atormentava, a viúva contratava um dalang, um titereiro, para fazer o boneco dançar e um dukun para falar com a alma do marido através do títere. Desde então, é deste modo que os batas continuam a comunicar com as almas dos antepassados que, segundo as suas crenças, vivem nas árvores, nos rios ou nas montanhas. Neste caso, o dukun é a viúva que sabe desta arte, embora tenha um assistente para a socorrer.
Fernão sente-se desacorçoado e agastado com o despropósito daquela superstição, não lhe faltava mais nada senão estar a falar com um boneco, como se fosse o defunto bata! Tem vontade de zarpar dali para fora, sem dizer água vai, mas teme as consequências se ofender aquela gente num ritual que envolve almas de outro mundo. Senta-se onde lhe indicam e aguarda em silêncio.
Por trás do pedestal do fantoche há uma grande caixa ou biombo onde se enfia o dalang, desaparecendo da vista de Fernão. A flauta faz-se ouvir, suave e plangente como um lamento. A viúva fala para o bonifrate, com doçura insistente. O tocador do gamelan faz soar os tambores numa cadência monótona e a flauta torna-se mais aguda, pungente.
– A dukun está a chamar o begu do marido e a rogar-lhe que entre no Si Gale Gale.
Com um estremecimento que parece despertá-lo para a vida o boneco move a cabeça e abre os olhos e, como se obedecesse a uma ordem irrecusável, os pés começam a mover-se ao ritmo da música e os braços erguem-se num requebro gracioso de dança. Os olhos miram em redor e a língua aflora entre os lábios como a saborear a vida.
– Parece mesmo humano e vivo! – exclama Fernão, arrepiado.
– O tendi e o begu dos mortos amam o som do surdam.
A flauta intensifica o seu canto, alteando e prolongando os sons, como se quisesse abafar a voz múltipla e vibrante do gamelan. A viúva, que não parara de murmurar em tom de reza, começa a sofrer análoga transformação. Os seus olhos fixos e vítreos parecem cegos, a voz enrouquece e engrossa, saindo em palavras soltas, como se sufocasse. O assistente sorve um bochecho de água de rosas e cospe-lha no rosto. A mulher começa a contorcer o corpo acompanhando a dança cada vez mais viva do bonifrate, que move as mãos de dedos compridos e longas unhas, desenhando gestos de dor e ternura, símbolos e palavras que ficaram por dizer. Por fim, o títere pára de dançar, inclina-se para a viúva e estende-lhe as mãos de dedos trémulos. A flauta cala-se, só os tambores se ouvem numa batida espaçada sempre igual. A dukun fica imóvel também, o assistente cospe-lhe um novo borrifo de água na cara que parece despertá-la e ela fala numa voz que não é sua.
– É o begu do marido – diz o intérprete, numa voz cortada de medo. – Quer saber por que o chamaram.
– Pergunta-lhe o que sucedeu aos portugueses na Ilha do Ouro – pede Fernão, pálido e assustado, sem talante de zombar. Não fala em Diogo Pacheco, porque nem o língua nem o assistente saberiam pronunciar-lhe o nome.
O intérprete obedece e o assistente repete a frase, em voz alta, à mulher. Os olhos do bonifrate giram, em aflição, lágrimas grossas correm-lhe pelas faces de madeira e as mãos de dedos afilados sobem até ao rosto, com se quisessem esconder a vergonha ou o remorso.
– O boneco está a chorar! – murmura Fernão, estarrecido.
A viúva contorce-se em grande sofrimento, revirando os olhos nas órbitas, o assistente borrifa-lhe mais uma vez o rosto; ela imobiliza-se e começa a falar com uma voz de homem que parece sair não dela mas do bonifrate, num longo arrazoado que o língua com voz estrangulada se apressa a trasladar: