– O begu não tem descanso por causa da traição que, em vida, o homem cometeu contra o português seu amigo.
Tal como os jaus contaram em Malaca, os dois navios haviam sido levados juntos pelo vento, como se tivessem asas, até Timor, e dois dias mais tarde tiveram vista de uma grande ilha desconhecida84, a que Diogo Pacheco dera o nome de Pago, em memória da conquista da fortaleza do rei de Bintão pelos portugueses; porém, quando se preparavam para surgir, nova mudança dos ventos fizera naufragar o jurupango contra os recifes. A partir daí, a história que Fernão ouve na estranha voz da mulher é outra.
Pacheco ia no comando do bergantim quando se dera o desastre e vira consternado um bando de negros, armados de lanças de pontas de arpão e clavas de madeira, protegidos por pequenos escudos redondos, lançarem um ataque à embarcação encalhada e impossibilitada de recorrer às bombardas para se defender. Disparara a sua artilharia, mas apesar do primeiro susto que os fizera fugir, ao ouvirem os estrondos e o derrube das árvores mais próximas, os cafres tinham carregado de novo sobre o navio, posicionando-se de modo a ficarem fora das vistas do bergantim.
Fora então que Pacheco fizera baixar os dois batéis, indo no primeiro com a maioria dos portugueses armados com arcabuzes e bestas, seguido pelo dos casados malaios, os jaus e o bata. À medida que avançavam para a praia podiam ver que os negros eram muito distintos dos de África e estavam nus, ornados com colares e pulseiras de conchas, um osso atravessado no nariz e escaras no rosto, com pintas brancas e um círculo em volta de cada olho. Tinham bons corpos, que cobriam de uma espessa camada de barro, pintados com riscas brancas, largas ou estreitas, nas pernas e braços, manchas vermelhas nas costas e peito.
O capitão disparara o pequeno canhão que levavam no esquife, fazendo alguns mortos e pondo outros em fuga, todavia, mal desembarcaram na praia, os cafres voltaram em maior número, homens e mulheres, arremessando-lhes lanças de longe, muito certeiras, por meio de um pau-lançador85, assim como também pedras e uns paus curvos e chatos que, se não derrubavam os adversários, voltavam pelo ar às mãos dos que os tinham lançado.
Vendo o número de atacantes, Pacheco fizera sinal ao segundo esquife, para que lhes acudisse, contudo os malaios, assustados com o que viam na praia, lançaram fora o único português que estava com eles e regressaram ao bergantim, soltando-lhe as velas e zarpando para Malaca.
Tendo deixando os companheiros entregues à sua sorte, nunca chegaram a saber se algum deles se salvara ou se haviam sido todos mortos. Pelo caminho forjaram a sua história de fuga e salvação, para não serem acusados e condenados como desertores ou por crime de traição.
A propósito do episódio sobrenatural, e tendo sempre em mente o apuramento da verdade, ousa a narradora arrancar o seu leitor à cena vivida por Fernão para, no capítulo seguinte, como num passe de magia que só a imaginação permite, o transportar a esse novo espaço invocado por artes demoníacas de um bonifrate possesso, a fim de lhe dar outro relato dos mesmos sucessos, registados pelos xamãs e homens velhos da Terra Australis em pinturas, canções e mimos que ainda hoje se podem observar nas cavernas e nas danças aborígenes. Após esta curta viagem no tempo, se retomará o fio à meada do relato da embaixada de Fernão ao reino dos Batas.
84 Presumivelmente a actual Sir Graham Moore Island, à entrada de Napier Broome Bay, segundo Peter Trickett, em Para Além de Capricórnio.
85 Woomera ou wommera é um atirador de lanças.
V
Pode ver-se passarem as nuvens, mas não os pensamentos
(maori)
Alchera ou Alcheringa (O Sonho ou a Era do Sonho):
No alvorecer dos tempos, a Terra era uma imensa planície, de onde se ergueram os Seres Sonhadores que aí dormiam, tomando formas de plantas e árvores, rochas, lagos e poços ou animais como o canguru, a serpente e o falcão.
A Era do Sonho terminou quando os Seres Sonhadores deixaram a superfície da Terra, mas o seu rasto permaneceu nela. E deixaram principalmente os Wandjina, Espíritos Ancestrais, senhores da chuva e do trovão, para trazerem à vida os seres humanos, as plantas e os animais, assim como as leis, o fogo e as armas, para ajudar o povo a viver na terra.
Graças aos rituais e cerimónias sagradas das tribos, ensinadas pelos Espíritos Ancestrais, a ligação dos homens com a Época do Sonho é continuamente renovada, tornando presente esse tempo primordial.
O povo é, pois, descendente dos Seres Sonhadores, que não morrem, vivendo sempre em diferentes formas. Na morte dos humanos o espírito sobrevive. O passado vive deste modo ligado ao presente e é muito real.
(Mito aborígene da Terra Australis)
Na gruta das pinturas dos wandjina, o Curandeiro desperta do seu Sonho causado pela erva que lhe permite comunicar com os Espíritos Ancestrais para pedir conselho e ajuda. Olha o grupo de cabeças redondas, com o seu halo ocre, os rostos brancos sem boca, os grandes olhos sombrios como poços sem fundo que o atemorizam sempre, contudo, tanto elas como Ungut, a Serpente Arco-Íris, não parecem perturbadas.
Não viera ali para pedir chuva ou caça abundante. A sombra do Curandeiro, separada do corpo durante o Sono, fora por ele enviada a Wallandanga, a grande Serpente Nebulosa de Estrelas por onde caminham os seres celestes, enquanto a Mulher-Sol com a sua tocha terrível e o Homem-Lua com o seu pálido facho iluminam a Terra. A sua sombra deambulara pelas regiões do Céu, onde os heróis vivem como estrelas, graças às proezas que cometeram na terra, porém não achara quem pudesse defender o seu povo dos wandjina que tomavam a forma de homens brancos, como as sombras dos mortos, com peles de crocodilo e tartaruga. O Curandeiro mandara a sua sombra ao Mundo Subterrâneo pedir ajuda aos Espíritos dos Antepassados, porque os wandjina maléficos vinham do mundo dos mortos para, mais uma vez, destruírem a harmonia do seu mundo.
A primeira visita dos altos e corpulentos Homens-Crocodilo à Ilha causara temor e estranheza ao povo, contudo, ao verem entre eles gente da raça dos pescadores de pérolas e de pepinos do mar, das ilhas do norte onde mora a Mãe de todas as coisas, os caçadores tinham-se acercado dos visitantes, para os conhecerem e tocarem nos seus estranhos corpos. Trocaram o ouro e as carapaças das tartarugas pelos panos vermelhos e azuis que eles traziam e ofereceram-lhes as mais belas mulheres da tribo em sinal de boas-vindas.
Então, o wandjina de longa veste que parecia ser o seu curandeiro – com o alto da cabeça rapado como um halo e um amuleto feito com dois paus cruzados – e também o chefe recusaram as mulheres, afrontando todo o clã ao infringir o tabu sagrado da hospitalidade e mostrando desse modo como as suas intenções eram maléficas. O povo retirara-se para o alto da colina e os guerreiros brandiram as lanças ameaçadoras, com gritos de Warra! Warra!, para que se fossem da sua terra. Por fim, partiram e o Curandeiro, que era seu pai, pintara na parede da gruta o wandjina estrangeiro da longa veste ocre, com poderes de xamã.
Passadas muitas luas, os espíritos maléficos vieram de novo do mundo dos mortos e quiseram pisar a ilha sagrada dos seus totens e isso o Curandeiro não pudera consentir e convocara os homens para a guerra. Uma tremenda batalha fora travada na praia e, apesar dos raios mortíferos dos paus de fogo e dos estranhos arcos que lançavam grossos dardos em vez de setas, o povo tinha vencido os Homens-Crocodilo, pagando a vitória com muitas vidas. Os mais valentes dos wandjina invasores foram comidos pelos guerreiros vencedores, para que a sua força e valentia passassem a fazer parte da tribo e a tornassem mais forte. Só a um pouparam a vida, por ser o chefe, que se distinguia pela falta dos dentes da frente.
De tempos a tempos tinham sidos avistados os pássaros de madeira gigantes com as asas brancas abertas ao vento, trazendo no seu bojo os espíritos brancos e ele temia que, se os wandjina tutelares os não protegessem, pudesse haver no céu uma nova Aurora pintada com o sangue derramado da sua gente numa feroz batalha. Como a do tempo da sua juventude, quando esses espíritos maléficos usaram contra o povo paus-de-fogo que explodiam em relâmpagos e trovões, dardejando raios que arrasavam tudo à sua volta. O Curandeiro roga aos wandjina tutelares que lhe enviem, numa estrela cadente, um pau-de-fogo gigante semelhante aos que nessa batalha tinham recolhido do pássaro de madeira e da sua piroga gigante e transportado para a ilha sagrada como totens da tribo, em honra da sua vitória.