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E desembarcando abaixo do surgidouro cerca de um tiro de berço, sem oposição nenhuma, se foi marchando ao longo da praia para a cidade na qual já a este tempo havia muita gente por cima dos muros com grande soma de bandeiras de seda, capeando com muitos tangeres e grandes gritas, como gente que se estribava mais nas palavras

e nas mostras de fora, que nas obras. Chegando os nossos a pouco mais de tiro de espingarda, das cavas que estavam por fora do muro, nos saíram por duas portas cerca de mil até mil e duzentos homens, segundo o esmo de alguns, dos quais cento até cento e vinte eram a cavalo, ou para melhor dizer, de sendeiros bem magros. Estes começaram a escaramuçar de uma parte para outra, e o fizeram tão bem e tão despejadamente que as mais das vezes se encontravam uns com os outros, e em muitas delas caíam três e quatro no chão, por onde se entendeu que devia ser gente do termo que viera ali vinda mais por força que por sua vontade.

António de Faria esforçou alegremente os seus para a peleja, e fazendo sinal aos juncos esperou os inimigos fora no campo, parecendo-lhe que ali se quisessem averiguar com ele, segundo a fanfarronice das suas mostras prometia; eles, tornando de novo à escaramuça, andaram um pedaço à roda como se debulhassem calcadouro de trigo, parecendo-lhes que só aquilo bastava para nos desviarem do nosso propósito, porém vendo que nós não voltávamos o rosto como lhes pareceu ou porventura desejavam, se juntaram todos num corpo e assim juntos e mal concertados se detiveram um pouco sem virem mais para diante.

O nosso capitão, vendo-os daquela maneira, mandou disparar a espingardaria toda junta, a qual até então estivera sempre quieta, e prouve a Deus que se empregou tão bem que dos de cavalo que estavam na dianteira, mais de metade vieram logo ao chão. Nós, com este bom prognóstico arremetemos todos a eles, bradando sempre pelo nome de Jesus, e quis ele por sua misericórdia que os inimigos nos largaram o campo fugindo tão desatinadamente que uns caíam por cima dos outros, e chegando a uma ponte que atravessava a cava, se embaraçaram de maneira que não podiam ir para trás nem para diante. Nesta conjunção chegou até eles o corpo da nossa gente, e os trataram de maneira que mais de trezentos ficaram logo ali deitados uns sobre os outros, coisa lastimosa de ver, porque não houve nenhum que arrancasse espada. Nós, com o fervor desta vitória arremetemos logo à porta e nela achámos o mandarim com cerca de seiscentos homens consigo, o qual estava em cima de um bom cavalo, com umas couraças de veludo roxo de cravação dourada do tempo antigo, as quais depois soubemos que foram de um tal Tomé Pires, que EI-Rei D. Manuel da gloriosa memória mandara como embaixador à China, na nau de Fernão Peres de Andrade, governando o Estado da Índia, Lopo Soares de Albergaria.

o mandarim, com a gente que tinha consigo nos quis fazer rosto ao entrar pela porta, com o que entre eles e nós se travou uma cruel briga, em que por espaço de quatro ou cinco credos se iam eles já metendo connosco com muito menos medo que os outros da ponte, se um moço nosso não derrubasse o mandarim do cavalo abaixo com uma espingardada que lhe deu pelos peitos, com o que os chins ficaram tão assombrados que todos juntamente voltaram logo as costas, e se começaram a recolher sem nenhuma ordem pelas portas dentro, e nós todos de volta com eles, derrubando-os às lançadas, sem nenhum ter acordo de fechar as portas, e levando-os assim como a gado por uma rua muito comprida, saíram por outra porta que ia para o sertão, ao qual se acolheram todos sem ficar nem um só. António de Faria, recolhendo então a si toda a gente, para não haver algum desmancho, se fez todo num corpo e se foi com ela à chifanga, que era a prisão onde os nossos estavam, que em nos vendo deram

uma tamanha grita de . Senhor Deus misericórdia. que fazia tremer as carnes. E mandou logo com machados quebrar as portas e as grades. e como o desejo e o fervor disto era grande. em um momento foi tudo feito em pedaços.

e os ferros com que os cativos estavam presos. logo tirados. de maneira que em muito breve espaço os companheiros todos estavam soltos e livres. E foi mandado aos soldados e à mais gente da nossa companhia que cada um por si apanhasse o que pudesse. porque não havia de haver repartição nenhuma. senão que o que cada um levasse havia de ser tudo seu. mas que lhes rogava que fosse muito depressa. porque lhes não dava mais espaço que só meia hora muito pequena. ao que todos responderam que eram muito contentes.

Então se começaram logo uns a meter pelas casas. e António de Faria se foi às do mandarim. que quis por seu quinhão. onde achou oito mil taéis de prata somente. e cinco boiões grandes de almíscar que mandou recolher. e o mais largou aos moços que iam com ele. que foi muita seda. retrós. cetins. damascos. e barças de porcelana finas.

em que todos carregaram até mais não poderem. de maneira que as quatro barcas e as três champanas em que a gente desembarcara, por quatro vezes se carregaram e descarregaram nos juncos, tanto que não houve moço nem marinheiro que não falasse de caixão e caixões de peças, fora o secreto com que cada um se calou.

Vendo António de Faria que era já passada mais de hora e meia, mandou com muita pressa recolher a gente, a qual não havia coisa que a pudesse desapegar da pressa em que andava, e na gente de mais conta se enxergava ainda isto muito mais. Pelo que, receoso ele de lhe acontecer algum desastre, por se já vir chegando a noite, mandou pôr fogo à cidade por dez ou doze partes, e como a maior parte dela era de tabuado de pinho e de outra madeira, em menos de um quarto de hora ardeu tão bravamente que parecia coisa do inferno. E retirando-se com toda a gente para a praia, se embarcou sem oposição nenhuma, e todos muito ricos e muito contentes, e com muitas moças muito formosas, que era lástima vê-Ias ir atadas com os morrões dos arcabuzes, a quatro e quatro, e cinco a cinco, e todas chorando, e os nossos rindo e cantando.

Do maió que António de faria paMOU até chegar

à6 portaó de Liampó

Sendo António de Faria embarcado com toda a gente, como era já tarde, não se atendeu por então a mais que a curar os feridos, que foram cinquenta, de que oito eram portugueses, e os mais escravos e marinheiros, e a mandar enterrar os mortos que foram nove, em que entrou um português. E passando a noite com boa vigia, por causa dos juncos que estavam no rio, logo que a manhã foi clara se foi a uma povoação que estava da outra parte à borda da água e a achou despejada de toda a gente, sem se achar nela uma só pessoa, mas achou as casas com todo

o recheio de suas fazendas e infinitos mantimentos, com os quais António de Faria mandou carregar os juncos, receoso que pelo que ali tinha feito lhos não quisessem vender em nenhum porto onde fosse. E com isto se determinou, com parecer e conselho de todos, ir invernar os três meses que lhe faltavam para poder fazer sua viagem, a uma ilha deserta que estava ao mar de Liampó quinze léguas, que se chamava Pulo Hinhor, de boa aguada e bom surgi douro, por lhe parecer que indo a Liampó poderia prejudicar a mercancia dos portugueses que lá invernavam quietamente com suas fazendas, a qual determinação e bom propósito todos lhe louvaram muito.

Partidos nós daqui deste porto de Nouday, havendo já cinco dias que velejávamos por entre as ilhas de Comolém e a terra firme, um sábado ao meio-dia nos veio acometer um ladrão de nome Prematá Gundel, grandíssimo inimigo da nação portuguesa, e a quem já por vezes tinha feito muito dano, tanto em Patane como em Sunda e Sião e nas mais partes onde acertava de os achar a seu propósito, e parecendo-lhe que éramos chins, nos acometeu com dois juncos muito grandes em que trazia duzentos homens de

peleja, fora a equipagem da mareação das velas; e aferrando um deles o junco de Mem Tarborda, o teve quase rendido; porém o Quiay Panjão, que ia um pouco mais ao mar, vendo-o daquela maneira voltou sobre ele e abalroou o junco do inimigo assim enfunado como vinha, e tomando-o pela quadra de estibordo lhe deu tamanha pancada que ambos ali logo se foram ao fundo, com o que Mem Taborda ficou livre do perigo em que estava. A isto acudiram com muita pressa três lorchas nossas que António de Faria levara do porto de Nouday, e quis Nosso Senhor que chegando elas, salvaram a maior parte da nossa gente, e os da parte contrária se afogaram todos. Neste tempo chegou o Prematá Gundel ao junco grande em que ia António de Faria, e aferrando-o com dois arpéus atados em cadeias de ferro muito compridas, o teve atracado de popa e de proa, onde se travou entre eles uma briga muito para ver, a qual depois de durar espaço de mais de meia hora, os inimigos pelejaram com tanto esforço que António de Faria se achou com a maior parte da sua gente ferida, e com isto por duas vezes em risco de ser tomado; porém, acudindo-lhe então as três lorchas e um junco pequeno em que vinha Pêro da Silva, prouve a Nosso Senhor que com este socorro tornaram os nossos a ganhar o que tinham perdido, e apertaram os inimigos de tal maneira que em pouco espaço se acabou o negócio de concluir de todo, com morte de oitenta e seis mouros que estavam dentro do junco de António de Faria, e o tinham posto em tanto aperto que os nossos não tinham já mais nele do que o chapitéu da popa. E daqui, entrando no junco do corsário, meteram à espada todos quantos acharam nele, sem a nenhum conservarem a vida, e a equipagem se tinha já toda lançado ao mar. Mas não se houve esta vitória tão barata que não custasse as vidas de dezassete dos nossos, nos quais entraram cinco portugueses, dos melhores soldados e mais esforçados de toda a companhia, e quarenta e três muito feridos, dos quais um foi António de Faria que ficou com uma zargunchada e duas cutiladas.